O HOMEM SEM BIOGRAFIA
Conto de Gustavo do Carmo
O apresentador do programa de entrevistas Papo Íntimo anuncia:
“Em nosso programa de hoje, vamos entrevistar o grande escritor Carlos de Souza. Seu livro “Garras da Inteligência” está há um ano liderando a lista dos mais vendidos. Carlos, boa noite, bem-vindo ao nosso programa, o que te inspirou a escrever este livro de enorme sucesso?”
“Primeiramente, boa noite a todos, é um prazer estar aqui no seu programa. Eu me inspirei na trajetória de sucesso do meu pai, um homem batalhador que nasceu pobre no interior de Minas, mudou-se para Belo Horizonte, prestou vestibular para engenharia civil e passou em primeiro lugar. Conseguiu uma ajuda de custo. Durante o curso sempre foi um dos melhores e conseguiu logo um emprego. Sempre muito inteligente, tornou-se um renomado engenheiro, fez mestrado, doutorado e foi transferido para a Holanda. Lá ele se casou, eu e minha irmã nascemos, mas logo viemos morar no Rio e ele montou uma construtora. Meu pai nos deu estudo, alimentação, conforto e carinho.”
“E você se formou em quê?”
“Formei-me em jornalismo e publicidade. Fiz pós-graduação em marketing, mestrado em sociologia. Doutorado e pós-doutorado em administração.”
“Você deve ter muita experiência, então. Já deu aulas?”
“Não. Nunca trabalhei.”
“Nem como jornalista ou publicitário?”
“Não.”
“Você já trabalhou em outra área? Como office-boy? Bancário? Auxiliar administrativo? Não quis trabalhar na construtora do seu pai?”
“Não. Apesar de me sustentar desde quando pequeno, ali nunca foi a minha praia. Nunca me senti bem na empresa. Meu sonho era ser vendedor de automóveis. Já tentei muitas vezes, mas não consegui. Sempre me rejeitavam por ser muito tímido.”
“Então por causa disso você também não conseguiu exercer a sua profissão de jornalista.”
“Exatamente”.
“O seu pai ainda te sustenta?”
“Não. Ele já é falecido. Quando morreu, a minha mãe ganhou uma gorda indenização do seguro de vida dele e continuou me sustentando até o sucesso do meu livro. Inclusive foi ela quem pagou a primeira edição.”
— Corta! Gritou o diretor do programa pelo alto-falante.
O entrevistador Geraldo Ricardo estranhou.
— Cortou por quê? A entrevista estava tão boa.
O diretor mal-humorado desceu para o palco:
— Eu sei que estava. Mas ninguém vai querer saber da vida de um filhinho de papai! As pessoas querem ver lições de vida! Querem ver a história de homens batalhadores que começaram a trabalhar cedo como eu! Estou na ativa desde os 12 anos! Esse cara aí foi sustentado pela mãe até os 40!
— Você tem alguma coisa contra? Você é um preconceituoso filho da mãe! Irrita-se Carlos.
— E VOCÊ É UM FILHINHO DE PAPAI VAGABUNDO!
— VAGABUNDO É VOCÊ! DUVIDO QUE TENHA TRABALHADO DESDE OS DOZE ANOS!
Antes de separar entrevistado e diretor de uma briga na frente do auditório, o apresentador diz que o velho realmente começou a trabalhar aos doze anos de idade e que aos vinte já era diretor.
Carlos de Souza pede desculpas ao diretor do programa, que propõe que ele invente uma história para comover o público. A biografia do entrevistado não poderia ficar limitada aos seus estudos, às entrevistas de emprego que não passou, às chacotas que levou dos amigos, às namoradas de infância que lhe deram fora, porque Carlos nunca namorou na vida.
— Você já se envolveu com drogas? Perguntou o diretor.
— Nunca. Sou até militante contra elas.
— Já teve uma doença grave? Uma anorexia, uma bulimia, um câncer?
— Nunca. Graças a Deus!
— Teve uma briga séria com o seu pai?
— Tive várias.
— Então conta para os telespectadores. Anima-se o diretor.
— Você não vai gostar. Foram brigas muito bobas.
— O seu pai nunca te cobrou para fazer um concurso público?
Carlos de Souza ficou em silêncio. O diretor ficou ainda mais entusiasmado.
— Você tem algum segredo! Vamos conte.
— Não vou contar. E também não darei mais entrevista. Se não quer ouvir sobre a minha obra eu vou embora.
Resignado, o diretor concordou.
— Está bem. Não falamos mais sobre a sua vida.
A entrevista foi regravada apenas para Carlos de Souza falar do livro e se despedir dos telespectadores. Durou apenas cinco minutos. “Garras da Inteligência” é um romance que conta a história de um menino superdotado que saiu de uma pequena aldeia miserável na África para entrar no segundo grau aos sete anos em uma escola norte-americana. Aos onze entrou na faculdade de engenharia eletrônica em Harvard. Formou-se aos quinze, já empregado em uma multinacional e aos dezessete se tornou presidente da empresa. Pela cor da sua pele foi vítima de uma conspiração e ficou preso durante cinco anos. Perdeu o emprego e demorou vinte anos para provar a sua inocência e vencer o preconceito.
As tragédias não aconteceram com o seu pai, mas sua trajetória de vida se parece um pouco com a do menino africano e inspirou o romance, como falou Carlos de Souza no início da entrevista.
Já o autor, apesar de estudar tanto, não conseguiu emprego porque acreditava que os e-mails que mandava seriam respondidos com uma boa proposta de emprego. Carlos passava o dia inteiro em casa. Via televisão e lia romances o dia inteiro quando ainda não tinha internet. Viciou-se quando a descobriu. Só conversava com os poucos amigos que conheceu pelo computador. E só mandava currículo pela grande rede. Tímido, não passava das dinâmicas de grupo. Seu pai começou a lhe cobrar para fazer concurso público. Carlos rejeitava. Foi obrigado a fazer. Fez só por fazer. Sem estudar. Quando foi obrigado a entrar em um cursinho, aos trinta anos, teve uma séria discussão com o pai.
Dois anos depois de sua morte, publicou o livro, que não fez sucesso imediato. Passados mais oito anos o retorno finalmente apareceu. E tornou-se um homem rico e famoso, mas sem biografia profissional.
A mídia já estava quase esquecendo de Carlos de Souza, que não tinha nada para contar além da sua vida burocrática e medíocre. Suas entrevistas nos jornais e revistas ocupavam apenas meia página. Na TV e no rádio, um minuto. Na internet, dez linhas. Recebeu um ultimato do editor que tinha comprado os direitos do seu primeiro romance, “Garras da Inteligência”: ou escrevia um novo best-seller ou teria o contrato rescindido e teria que voltar a viver da aposentadoria da mãe.
Escreveu “O homem sem biografia”.