UM MARCO NO TEMPO NUMA LEMBRANÇA INESQUECÍVEL

Minhas recordações voltavam à fazenda do meu pai. Ele comprara um caminhão e partira para o nordeste brasileiro para trazer peões, pessoas para o serviço de lavrar a terra. A colheita aproximava-se e ele não poderia prescindir da mão-de-obra.

Na volta, papai encontrara o lar desfeito. A esposa o abandonara. Triste, papai não abdicara das filhas, embora os tios se prontificassem a ficar conosco: eu, Josefa (a Zezita, carinhosamente,) e Zélia. As duas últimas do segundo casamento.

Naquele ano, com o impasse, houvera grande prejuízo nas atividades da fazenda, bem como da casa de farinha. Papai não desanimara. Sempre tivera pulso forte e determinação. Mesmo sem estudo, sabia expor as suas idéias e conseguir o desejado.

— Vou internar vocês num colégio de freiras. Quero que vençam na vida pelo estudo, pela boa educação. Somente elas poderão lhes transmitir isso — exclamara papai.

Eu tinha nove anos, naquela época.

Numa madrugada fria, saímos de Minas. A lua branca ainda passeava no céu estrelado, banhando de luz a silhueta do papai. O terreiro de chão batido, o tamboril, o curral, os pés de laranjeiras carregadinhos de frutos, a casa da fazenda de janelas fechadas na calada da noite, ficaram impregnados em mim feito um presságio de saudade e gratidão. Não posso esquecer do seu telhado vermelho, iluminado pela luz da lua, distanciando-se a cada vez que olhávamos para trás. O ar frio daquela madrugada exalava perfume de flores silvestres, misturando-se ao zumbido de insetos e ao chilrear de pássaros notívagos.

Éramos seguidos pelas próprias sombras que se esgueiravam ao lado. O caminho fazia curvas entre os arvoredos e parecia não ter fim. As montanhas se delineavam à frente, como a se despedirem de nós. De vez em quando a lua brincava de esconde-esconde nas frondes das árvores e dos coqueiros, alumiando a plantação de algodão que se debulhava em flocos brancos entre a ramagem verde e viçosa. Ninguém ousava conversar, embora o iminente desbravamento do desconhecido acalentasse as nossas almas. Num clima nostálgico, ouvia-se ao longe o cantar de galos, anunciando os albores da manhã.

Na ponte, o riacho gorgolejava entre as pedras, exibindo os alvos lírios à sua margem, enfeitado pelo cricrilar de grilos no rumorejo do mato denso. As libélulas, em vaporosa dança, faziam reverências ao amanhecer, que despontava em tênue claridade por trás serra. O vapor do riacho deixava visível seu curso pelas terras da fazenda, feito a fumaça de um trem de ferro. Eram lágrimas evaporadas num adeus inaudível. Ao atravessá-lo, não pude conter o pranto. O coração ficava naquelas águas, naquelas margens que nos proporcionaram tanta alegria. Era ali que a nossa fantasia criava asas, voava em histórias de príncipes montados em cavados brancos, de bruxas malvadas, castelos assombrados, portas subterrâneas para lugares encantados, fabricados pela fertilidade do nosso mundo de criança, debulhado em magias, em alegria.

O cheiro da manhã, impregnado de odores tão queridos, cravava em mim as últimas flechas. Até uma coruja entoou seu canto triste por despedida. A saudade da casa da fazenda, dos folguedos, da comida gostosa do fogão à lenha, já se fazia sentir. A ordem era sermos fortes apesar da pouca idade. Assim íamos deixando para trás parte de nós rumo a um novo destino. Com certeza, seria um marco divisor que marcaria o resto de nossas vidas.

Na rodovia, ao tomarmos o ônibus rumo a um novo destino, o coração apertara-se no peito, agitando-me o corpo frágil em tremores e náuseas. Uma saudade cortante remexia-me as víceras. Era a certeza de um adeus definitivo que se misturava à poeira da estrada que ficava para trás. Eu não podia chorar! Percebia que papai estava fazendo o melhor para nós. Mesmo criança, eu entendia que mudar era necessário. Talvez o meu espírito já estivesse sendo previamente preparado para suportar as intempéries da vida. Talvez eu fosse rocha e não soubesse.

Genaura Tormin
Enviado por Genaura Tormin em 16/03/2008
Reeditado em 14/01/2010
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