Menino Pobre em Casa de Gente Rica
Chegou meio encabulado na mansão da Dona Marta, patroa de sua tia, que há uns dois meses exercia a função de faxineira. Nunca tinha entrado numa casa daquele tamanho, com tantos cômodos, espaços para correr, coisas para tocar, algo que mais lhe parecia um castelo do que propriamente uma casa. Antes de entrar já havia recebido alguns avisos da tia:
- Fique sabendo que Dona Marta não gosta de presepada de menino! Não vá se meter a besta de ficar mexendo nas coisas alheias, ouviu?
“As coisas alheias!” Faz muito tempo que vinha escutando isso das pessoas maiores - dos seus tios em geral - ouviu que não se deve mexer nas coisas alheias, aprendeu que há coisas que são nossas e coisas que são alheias – sabia também que receberia um cascudo caso não respeitasse o aviso.
- Não pode pegar em nada, viu? Só pode olhar.
Mulato, mirradinho, quase se perdia dentro das roupas que a tia lhe punha. A roupa era do irmão mais velho, não podia vir com as suas, que além de velhas e amarrotadas poderiam não agradar ao gosto de Dona Marta, “pessoa de alta classe”, como dizia sua tia, inspirando respeito cada vez que se referia à patroa.
A princípio, o menino limitava-se a olhar as coisas ao redor, com um desejo quase incontido de pegá-las, tinha vontade de mexer, cutucar, saber se eram de verdade. Aquele aquário enorme com aqueles peixes dentro – tão coloridos! - aquela bola de futebol – seria de couro? - aquela estátua de mármore, aquele quadro com um desenho estranho, aquele sofá enorme – que vontade de pular em cima dele! - tudo lhe provocava um espanto que ele não conseguia expressar, apenas se limitava a olhar admirado, pois sabia que se mexesse em algo logo levaria um cascudo da tia. “Não pode”. “É alheio”.
- Tudo é tão alheio! – pensou o menino.
Com essas meditações, retirou, em silêncio, o piãozinho que carregara no bolso. E ficou assim olhando pro seu pião, sentindo-se refletido nele. Tão pequeno quanto ele, ilhado no meio de tanta coisa inatingível.
Assim pensando, sentiu-se seduzido pela bola de couro que jazia num canto escuro da sala. Quem a teria posto ali? Não importava, queria chutá-la, ou pelo menos cutucá-la com o dedo, pra saber se era de couro mesmo. Antes de arriscar um passo, olhou para os lados, certificando-se de que ninguém estava por perto. Então se inclinou, estendeu as mãozinhas sôfregas e... finalmente tocou a tão sonhada bola, abriu um sorriso de uma orelha à outra. Pôde concluir que era mesmo de couro, só havia tocado uma bola de couro uma única vez na vida, e ainda assim muito rápido, quando fora a uma loja com a tia. Ele bem que queria, mas na ocasião ela disse que não tinha dinheiro – muito caro! Mas agora ele tinha ali uma bola de couro em suas mãos, e o mais incrível é que ela estava cheia – durinha! - diferente da bola que tinha em sua casa. Quais pés a teriam chutado? “Tão novinha ainda, acho que nunca foi chutada por ninguém” – avaliava, quando foi surpreendido por um grito:
- Larga a minha bola!
Surpreendido pelo susto levou um tombo: “Ai!”
O outro que chegara pôs-se a rir. E ao mesmo tempo em que se recuperava do susto, erguia-se murchinho, encabulado, sem saber o que dizer ante a gargalhada do outro menino:
- Você é engraçado.
Ainda tímido, arriscou um “por quê?”.
- Ora por quê? Por que você caiu, oras!
Assim, cessado o riso, ficaram se olhando. Eram praticamente do mesmo tamanho, talvez tivessem a mesma idade, mas a primeira diferença visível era na cor, detalhe que o menino da casa logo notou.
- Engraçado, você é da cor do café da manhã.
Ouvindo isso o mulatinho arrisca uma observação:
- E você parece leite, bem branquinho.
Assim, ficaram ainda se olhando por um breve tempo, até que o menino branco como leite pergunta o nome do que tem cor de café “Qual é seu nome?”
- Eu? Eu me chamo Pingo!
- Engraçado seu nome, parece apelido... É um apelido, é?
- Hum-hum.
- Engraçado. Mas você não tem nome não?
- Tenho. Mas eu não me lembro. Todos só me chamam de Pingo.
- É mesmo! Você parece um pingo de gente! – exclama o outro, admirado. – Pois é Pingo! Eu me chamo Luis Carlos. Minha mãe disse que quando a gente conhece as pessoas a gente tem que perguntar o nome das pessoas e falar pras pessoas o nome da gente também, você sabia disso?
Enquanto Luís Carlos falava pelos cotovelos, mais que o homem da cobra, Pingo ficava ali, calado, na dele, só ouvindo. Amargando o medo de cometer alguma besteira que provocasse a fúria da tia, preferia não fazer nada, o que ficava difícil diante da insistência incansável de Luís Carlos, filho único naquele casarão, louco por um amigo com quem brincar:
- Vamos jogar bola? Vamos jogar vídeo-game? Vamos brincar na piscina? Vamos mexer na internet?
Não resistindo aos apelos do novo amigo, Pingo cedeu, não sem medo, às tentações da brincadeira. E aos poucos, jogando bola, vídeo-game, nadando, mexendo na internet, foi se esquecendo do cascudo e se entregando aos prazeres que aquelas brincadeiras lhe davam. E o quarto de Luís Carlos, então - que coisa incrível! - só aquele quarto dava duas casas da sua. E os brinquedos? Era tanto brinquedo, estranhava-lhe aquilo, não conseguia entender porque tanto brinquedo pertencia a só uma pessoa, “daria tempo de brincar com todos eles?”. Daí, eles decidiram brincar de pião:
- Veja! O meu pião faz um montão de coisa que o seu não faz – exibia Luis Carlos o seu pião movido à pilha, a nova sensação do mercado - Ele é maior, roda sozinho, pisca umas luzinhas, canta música, faz tudo.
Pingo ficou olhando espantado, nunca tinha visto um pião igual àquele, que além de grande, rodava sozinho, piscava luzes e cantava uma musiquinha.
- Num é legal?
Pingo ficou olhando o pião. Olhou o dele, olhou o seu, e concluiu:
- Eu num acho não.
- Como não?
- O seu pião é de mentirinha.
- Como de mentirinha?
- Por que ele pode fazer tudo isso, mas não tem corda pra gente puxar. Um pião nunca será um pião de verdade se não tiver corda pra gente puxar.
- Pois o meu não precisa de cordinha nenhuma, pronto! – retrucou Luís, que, cansado de piões, passou a querer brincar de outra coisa:
- Por que não brincamos de hospital?
- Brincar de hospital? Como é?
- É fácil! Eu sou o médico e você o paciente.
- Ah não. Ser paciente dói. Eu quero ser médico também.
- Não. Eu sou o médico, eu falei primeiro. Minha mãe disse que eu, quando eu crescer, eu serei um médico.
- Legal... Pingo ficou calado, pensando. Percebeu que nunca lhe disseram o que ele deveria ser. Será que era assim, ter que esperar alguém falar o que se deve ser, igual a mãe de Luis. Pelo menos sua tia nunca havia lhe falado nada.
- Minha mãe disse que eu tenho que estudar. Mas eu acho a escola tão chata, sabe? Mas às vezes é legal. E você, vai pra escola Pingo?
- Ainda não, só no ano que vem.
- Ué, por quê?
- Por que minha mãe viajou e eu tenho que trabalhar pra ajudar minha tia e os meus irmãos... Vendendo chiclete pros moço do semáforo.
- E pode? Eu pensava que só as pessoas grandes trabalhavam...
- Mas pode sim.
- Que legal! Então já posso ser médico, não preciso esperar pra ser grande. E você, Pingo, vai sempre vender chiclete?
Essa pergunta o pegou de surpresa, Pingo nunca se imaginou sendo outra coisa que não fosse vendedor de chiclete no semáforo.
- É legal esse trabalho de vender chiclete?
- Não sei. Quando eu quero brincar eu não gosto. Mas ruim mesmo é quando minha tia me manda vender chocolate. Dá vontade de comer...
- Então vira médico, Pingo!
Logo se esqueceram da conversa e passaram a correr no quintal, brincaram de se esconder, de pique e pega, e, então, exaustos, se jogaram no chão.
Cansado, Pingo não deixava de se encantar com todas aquelas coisas – tantas coisas! - tão diferente da sua vida no subúrbio. Sempre tão carente disso ou daquilo. Não que sua vida fosse de todo triste, era até alegre, vivia sorrindo, soltando pipa, fazendo grafite, jogando biloca, golzinho...
Mas agora, sentado ali, exausto sob a grama do quintal, aquele quintal enorme do Luís Carlos, ele sentia um estranho vazio dentro de si, ele imaginava o quanto deveria ser triste ter um quintal tão grande e não ter ninguém pra correr nele. Pingo não tinha todas àquelas coisas que o Luís Carlos tinha: piscina, vídeo-game, computador, bola de couro. Mas por outro lado, se lembrava dos seus amigos: o Pereba, o Juvenal, o Toquinho, o Birosca, o Cabeça de Prego. Tinha amigos. Enchia-se de ternura quando se lembrava deles. Seria legal se eles tivessem aqui, para correr nesse quintal também... Assim pensava ele, tão acostumado a dividir tudo o que tinha com os irmãozinhos, o pão, o almoço, o biscoito.
- Ô Luis, eu posso chamar todos os meus amigos pra brincar com a gente?
- Não sei, acho que minha mãe não ia deixar...
Nesse momento, Pingo não conseguiria exprimir com palavras a sensação que a resposta do amigo lhe infundia. Mas o que ele sentira era que alguma coisa lhe era inacessível, como qualquer coisa fechada, hostil, impenetrável. Era a constatação de um mundo do qual ele não poderia participar, nem ele e nem seus amigos – e sem perceber, Pingo ia amadurecendo, enquanto o seu coraçãozinho confuso deixava resvalar um fio de esperança que lhe subia aos olhos – fio que lhe descia em forma de lágrimas.
- Porque você está chorando, Pingo?
- Eu não sei, Luís, eu não sei.
Pingo não sabia. Daqui a pouco teria que partir, a tia lhe daria um cascudo, e mais outros pela vida. Ele não voltaria à casa de Dona Marta, continuaria a vender por um bom tempo chicletes no semáforo, soltaria pipa, faria grafite, jogaria biloca, o colégio sempre para o ano que vem. Quando se arranjasse num emprego melhor já seria tarde pra estudo, o sonho de ser médico cada vez mais distante. Conseguiria concluir apenas o ginásio e não teria mais como seguir adiante, não teria muito tempo, teria filhos pra cuidar, chegaria exausto do trabalho, uma pneumonia acometerá o seu filho caçula, enfrentará fila num hospital público, onde estará trabalhando o doutor Luís Carlos, médico recém-formado, que não mais se lembrará daquele dia, daquele dia em que os dois brincaram de pião, no quintal de sua casa.
***