Chaves

O sol já havia se posto, mas ainda não estava escuro o bastante para chamar de noite. Como era bom chegar em casa após um longo e cansativo dia de trabalho, pensou Gabriela ao passar pela portaria do prédio (mesmo que a tal “casa” fosse algo entre uma quitinete e um apartamento, cujo aluguel era dividido com o namorado). Guilherme, a propósito, nunca fora fã da idéia de morarem juntos. Entretanto, devido às longas conversas com a possível alma gêmea e – principalmente - à economia financeira, ele cedeu. Juntaram os trapos, eletrodomésticos, móveis e afins mesmo com tão pouco tempo de namoro. As primeiras semanas foram uma maravilha. De uns tempos para cá, porém, nem tudo continuava um mar de rosas e os dois vinham experimentando as dificuldades de se viver como um casal.

Após longos três lances de escada, Gabi finalmente alcançou a porta de seu apartamento. Enfiou a mão na bolsa, em busca da chave para seu descanso – nos dois sentidos da palavra. Sua primeira tentativa resultou apenas em algumas moedas de dez centavos e um halls preto. Gabriela, neste momento, lembrou-se de ter colocado seu molho – excepcionalmente naquele dia – no bolso lateral de sua Luis Vitton falsificada. A segunda visita da mão direita ao interior da bolsa se mostrou ainda mais frustrada: tão logo seus dedos atingiram o tecido, foi detectado um furo recém-aberto por onde as chaves certamente escaparam sem seu conhecimento. A raiva momentânea da moça foi rapidamente confortada pela certeza do regresso iminente de Guilherme ao lar. Talvez uns 15 ou 20 minutos, pensou alto, calculando o tempo que passaria sentada na escadaria do prédio esperando por seu amado.

Acomodou-se no terceiro degrau, recolocou o fone de ouvido e deixou-se levar pela voz de Amy Winehouse. Pouco tempo depois, entretanto, ela não mais prestava atenção às canções da britânica: estava perdida em seus próprios pensamentos. Teria ela agido certo quanto à possivelmente precipitada união? Agora sentia como se o tivesse pressionado demais e como se os problemas por eles enfrentados fossem sua culpa. Guilherme era oito anos mais novo, mas esse era dos males o menor. Ela, formada há uns bons anos, trabalhava duro para continuar subindo na vida. Ele, apesar de ter cursado os três primeiros anos de faculdade, nunca completou o ensino superior. Gabi sempre fora do tipo responsável, enquanto Gui deixava tudo de lado em nome de uma bera. No começo do relacionamento, esse bom humor e essa motivação encantava Gabriela. Agora, nem tanto. Talvez por ela já ter passado pelos anos em que tudo gira em torno de happy hours e baladas à noite. Alcançara, inclusive, uma fase de dar grandes passos na vida. Já era hora de pensar seriamente em constituir uma família. Mas com Guilherme? Embora adorasse o tempo que passassem juntos, ele não era exatamente um modelo de pai. Sempre imaginou um homem sério, um ótimo exemplo para seus filhos. De que adiantava – pensou ela – idealizar uma pessoa que não existe... Revirou-se no lugar. Ela e Gui se amavam. Dali a pouco tempo ele estaria de volta e ela deixaria de pensar essas besteiras. Apoiou a cabeça no ombro e acabou caindo no sono.

(...)

- Boa noite!

Gabriela acordou assustada com o cumprimento do vizinho de porta.

- Ficou trancada pra fora?

Ela sorriu ainda sonolenta.

- Tomara que você consiga entrar ainda hoje! – desejou o simpático Senhor Gonçalves enquanto entrava em sua sala de estar.

Gabi espreguiçou os braços e bocejou. Foi checar as horas no celular: 21h54. Respirou fundo, pegou um pedaço de papel da bolsa e anotou em letras grandes: LIGAR P/ CHAVEIRO. Enquanto caminhava para usar o elevador, fez uma ligação.

- Oi. Priscila, tudo bom? (...) Tudo bem também. Seguinte, posso ir aí na sua casa agora? (...) Então, acredita que eu perdi minhas chaves? (...) Ele me ligou há pouco e disse que só chegará mais tarde. Me aconselhou a dormir numa amiga, não tem nenhum problema? (...) Claro, amanhã cedinho eu converso com ele. Vou comprar uma escova de dentes e já chego aí. ´Brigadão! Beijo.

Passou pela portaria de cabeça baixa, enxugando lágrimas que teimavam em cair. Sentia um aperto no coração. Dali para frente, além de tudo, ela teria de pagar o aluguel do apartamento sozinha.

bbc
Enviado por bbc em 03/03/2008
Reeditado em 03/03/2008
Código do texto: T886071