Achei ou perdi??
Achei ou perdi?
- “Ele não apareceu, Flor”, dizia minha avó!
- “Meu Deus, onde foi parar esse seu noivo, filha? Mais de 1h aqui na igreja esperando, e nada!”, falava minha mãe, já apavorada e olhando todos aqueles convidados que lotavam a igreja!
A corrida até esse sofrimento começou há 8 anos,sim, 8 anos! Deu tempo fazer o enxoval de tudo em dobro, mas o casamento, mesmo, nada!
Meu noivo, o Aurílio, era um rapaz alto, loiro, com grandes olhos azuis, descendente de italianos. Na nossa cidade, um rapaz bonito assim, não passava desapercebido das moiçolas de jeito nenhum. Estávamos no começo dos anos 40, época de guerra, mas, de também, esperança! Minha cidade, ao sul de Minas Gerais, era bonita e muito limpa. Neste alvoroço de coisas acontecendo no mundo, resolvi pressionar o Aurílio a marcar a data do casório, pois depois de 8 anos de namoro, já não havia desculpas pra tanta espera.
Na época, estava com 22 anos, o que já era mais que idade pra casar. Minha irmã mais velha, já estava casada, como mandava a tradição, e eu, seria a próxima... ou pensava que seria!
Lá estava eu: com vestido de organza branca, rendado, no melhor estilo Grace Kelly; vestido caro, comprado em Belo Horizonte, a capital. Sapatos já fora dos pés, que mostravam a meia-calça já suja de poeira, de tanto que esfregava no chão. Os olhos inchados, denotavam o maior sofrimento de minha vida, até então: estaria encalhada, fui deixada na porta da igreja! Era uma sentença terrível, mas bem realista daqueles tempos.
Aos prantos, voltei pra casa, com meus pais e irmãs. Não tinha forças nem pra falar, nem pra andar, ou seja, estava deprimida, minha vida, acabada!
O médico da cidade, Dr. Joaquim Queiroz, homem culto e de bom coração, saiu da igreja e foi direto pra minha casa, sem que meu pai precisasse chamá-lo.
-“Com certeza, ela vai precisar de uma dose muito grande de calmantes, Emília”, dizia meu pai!
-“Puxa a cama, desenrola esse lençol...vou tirar a roupa dela” ,dizia minha mãe, sob meu olhar morto de lagartixa!
-“Senhores, saiam e me deixem com a menina”, dizia o médico, já no meio do quarto, com a maior injeção já vista!
Fiquei sob cuidados médicos por mais de 6 meses, e minha vida se transformou num vazio. Soubemos que meu ex-noivo havia engravidado uma moça da cidade vizinha, filha de fazendeiros, estava bem, a praga! Não via festa em nada, não tinha vontade de sair, muito menos de passear. Minha única distração era a leitura. Adora romances, que mandava comprar na capital, por minha melhor amiga, a Vera.
De 15 em 15 dias, Vera trazia um romance novo pra mim, o que era uma festa. Lia tudo, lia, não, devorava! Sempre ia à estação de trem buscá-la, e era uma festa. Ela me entregava um romance e contava as novidades da capital. Um belo dia de outono, estava eu na estação, chegou o trem de Vera, e ela não desceu. Esperei que todos descessem e nada! Fui até o condutor e perguntei por ela, pessoa conhecida na cidade. Ele só falou : “vi não. A senhorinha Vera, veio não!”.
Voltei pra casa desolada. Primeiro por não ver minha amiga e ficar preocupada com seu paradeiro, e segundo, por ficar 15 dias sem nada de inédito pra ler.
No outro dia, resolvi ir até a casa de Vera. Saber se sua madrasta sabia dela, se ela havia mandado alguma notícia.
Ao subi a ribanceira que dava pra casa da minha amiga, já podia ouvir os gritos das crianças da rua brincando : de roda, de pião, de esconde-esconde.” Puxa, como é bom ser criança”, pensei!
Dona Lindalva, madrasta de Vera, estava na mesa da cozinha, chorava sem parar, e quando cheguei na porta,ela me olhou e disse : “ Foi Deus que te mandou aqui”, me mostrando uma carta de Vera, em suas mãos.
Na carta, Vera relatava que nos últimos dias, teve que se afastar da fábrica onde trabalhava, pois havia contraído tuberculose, doença comum naqueles tempos, mas não menos perigosa. Vera morava com uma colega de trabalho numa casinha de 2 cômodos, na capital. Havia 4 anos que saíra de nossa cidade, em busca de “melhoras”. Infelizmente, só encontrou emprego nesta fábrica de calçados, mas pra ela fora a glória, pois não voltaria mais de “mãos abanando” pra casa. A madrasta era muito boa com ela, mas depois da morte do pai, resolveu fazer sua vida sozinha na capital.
-“O que farei? Tenho que cuidar da plantação aqui, não posso sair correndo pra Belo Horizonte, assim”. Dizia ela.
-“Mas, eu posso!”, falei com certeza!
-“Faria isso? Tem certeza? Seus pais,minha filha? Sua vida?”
-“Que nada! Pra mim, será um prazer, poder ajudar minha amiga. Depois do que em aconteceu, minha vida precisa mudar. Vou pra capital amanhã, mesmo!”
Em casa, sob os olhares atônitos de minha irmã mais nova e meus pais, fazia as malas e ia contando o problema que minha amiga Vera enfrentava. Meu pai, apenas disse:
-“Você é meu tesouro, mas saindo da cidade pra ser útil a sua melhor amiga, vai se sentir melhor, dar mais alegria de viver a você, minha querida. Que Deus te abençoe e que Vera volte pra casa boa... e prometo, mandaremos algumas economias toda semana, pra ajudá-las.” Fiquei muito feliz com a aprovação deles, afinal, estaria mudando minha vida também, indo pra capital, ajudar a Vera, e quem sabe... Usar meu diploma de professora, que jamais usei, desde a colação de grau.
Eram 4h da manhã, quando o trem chegou a Belo Horizonte. “Que cidade grande, meu Deus”, pensei, já apavorada e com o endereço do hospital em que Vera estava, num pedaço de papel.
No papel estava escrito - Rua Francisco Sales, nº 1111, bairro de Santa Efigênia, Hospital da Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte. Comecei a procurar um carro de aluguel na estação mesmo, pois o que trazia de malas, era apenas uma pequena “trouxa” de vestidinhos. Ao chegar ao hospital, me deparei com uma grande estrutura hospitalar, o que me deixou de certa forma tranqüilizada, pois sabia que Vera estava nas melhores mãos.
Entrei meio sem graça, e perguntei por Vera na recepção, a enfermeira me olhou, como se estivesse ouvindo um palavrão e disse “Como, senhorita?”. Dei-me conta, que estava num dos maiores hospitais do Brasil. Como a enfermeira de plantão, ás 5h da manhã saberia onde estava uma pessoa de nome Vera, que Vera? De onde?
Resolvido essa parte, fui levada, como acompanhante a um alojamento, bem cuidado, arejado e limpo. Tomei um banho e vesti uma roupa simples, mas alegre, pra enfrentar o quadro de doença que me aguardada na enfermaria.
Nunca tinha andado, aliás, nunca tinha visto um elevador. Minha cidade, muito pequena, só tinha um posto médico com 4 salas, uma de parto,inclusive. Entrei num corredor que mais parecia uma rua de minha cidade e pra piorar, tinha uma monte de setas : salas de cirurgia, enfermaria A, B e C, salas de exames, dormitórios da enfermagem...fiquei totalmente perdida. Nesta confusão e sem saber direito onde estava a enfermaria de Vera, fiquei meio tonta, até. Virei e olhei em volta, e fui empurrada com toda força por uma maca, em alta velocidade, com um louco dirigindo e gritando “insulina a 0,5 % e rápido”...fiquei olhando aquilo, e me chamou a atenção a altura e os olhos daquele homem, que conduzia a maca e ao mesmo tempo, gritava para as enfermeiras de forma tão enérgica. Tinha olhos negros penetrantes...e cabelos pretos da cor de ébano!
Bem, fiquei meio tonta, fui atropelada por uma maca , mas precisava achar Vera,coitada. Peguei o papel e li - enfermaria 18/ ala A/ doenças infecto-contagiosas- fui andando e perguntando.
Como em todo hospital, a ala A, era arejada e limpa, e só me fazia lembrar que era um hospital, por conta de alguns gemidos e a quantidade absurda de camas. Vera, estava sentada numa cadeira de balanço, e não esperava, de forma alguma, minha presença.
“Não acha que deveria voltar pra cama?”, perguntei a ela.
- “Não acredito que saiu daquele lugar encantador e cheio de modernidades, pra vir me ver?”, já com os olhos chio de lágrimas. Levantou e me estendeu a mão.
- Corri e a abracei : “ minha amiga, minha irmã, jamais te deixaria sozinha num momento desses. Vim pra Belo Horizonte pra cuidar de você e quem sabe,arrumar um emprego.”
Ela mal conseguia acreditar. Choramos juntas, apesar de não poder ficar muito tempo abraçadas. A tuberculose é muito contagiosa e não dá pra brincar.
Havia quase 2 semanas que fazia companhia a Vera, quando recebi um boletim médico, onde transcrevia a melhora de minha amiga e era solicitada a presença da acompanhante, para falar com o médico-geral do setor de doenças infecto-contagiosas, o Dr.Nelson Munhoz. Fiquei olhando aquela notificação e escrevi pra dona Lindalva pra contar da melhora de minha amiga, e escrevi a meus pais, coisa que não fazia desde a chegada.
Às 14h do dia seguinte, estava eu, no corredor com várias salas de médicos, com especialidades diversas, até de assuntos que não conhecia : gastroenterologista, reumatologista, fisioteria pulmonar, pneumologista. Encontrei a sala onde estava sendo esperada, dizia numa tabuleta verde-musgo : médico-chefe-doenças infecto-contagiosas. “Meu Deus, que nome grande”.
Bati na porta e uma voz feminina disse:”pode entrar,por favor”. Era uma sala de muito bom gosto, decoração austera, porém chique pra o cargo do “inquilino”, pensei! A moça, uma enfermeira muito simpática, me pediu pra sentar e esperar o médico chamar.
Sentei, e comecei a ler a revista “O Cruzeiro”, coisa que não acontecia há tempos, pois não me sobrava tempo pra ler, e quando chegava ao dormitório,”desmaiava” de cansada!
Totalmente imersa na leitura, me assustei quando uma voz grave e máscula me chamou: “senhorita,pode me acompanhar?”. Olhei e me deparei com aqules olhos e cabelos cor de ébano, agora me conjunto, pois o médico era um homem bonito e muito educado. Era o médico que havia me “atropelado” no dia da chegada ao hospital. Atropelamento de maca, diga-se de passagem...que ridículo!
O Dr.Munhoz era o que poderia se chamar de “bom partido” : solteiro, 38 anos, estudioso e bonito..mas,eu não estava lá pra saber disso, e esqueci desses detalhes! Começou a relatar como Vera havia chegado ao hospital, a evolução, os medicamentos, os exames, mas, não conseguia prestar atenção, e num momento, ele me perguntou de supetão:
-“Será que vc gostaria de tomar um sorvete comigo na cantina?”
Fiquei atordoada, mas lisonjeada...fui! ou melhor, passei antes no dormitório e troquei de roupa,pois aquilo mais parecia um cortejo, ou estava imaginando coisa?
Bem, o Dr. Munhoz tomou sorvete comigo, fomos ao cinema, e começamos a estreitar o que era uma relação parentes/acompanhantes/médico.
No final de 1944, já com 1 anos e três meses de tratamento, Vera teve alta, e eu, estava lá pra segurar suas malas e colocá-las no trem rumo a nossa cidade do interior. Eu? Fiquei com o Dr. Munhoz, que com o passar do tempo, se transformou no remédio pra minhas feridas mais profundas: as do coração!