A última palavra
A última palavra
Horas depois, Ramiro pensou ter feito a coisa certa, olhando a casa mobiliada ao gosto de sua mulher, com guarda-roupas, cama, televisão, cozinha planejada de cor branca, fogão a gás novo e até um aparelho de ar condicionado para o quarto. Tudo estava em perfeita harmonia, até o cheiro de cupim impregnado nos antigos cacarecos havia abandonado a casa junto a seus hospedeiros.
Foi porque no mês de dezembro, as vendas de seguro aumentaram bastante, devido à precaução com os riscos esporádicos por conta das viagens, do consumo desenfreado e dos alienadores de prazer. Feliz da vida, o casal viu sua conta-poupança crescer razoavelmente, faiscando em ambos a possibilidade de realizar seus desejos. Como o ano todo fora diferente daquele mês, Ramiro sentiu-se envolvido pela mesma magia com que seduzia seus clientes, e passou vários dias com o pensamento distante, tentando conceber uma idéia para convencer Teresa de que os móveis ainda poderiam agüentar mais uns cinco anos. Em suas pernas arrebentavam varizes todos os dias por conta do peso da mala abarrotada com os contratos que levava nas mãos de porta em porta, parecia lhe ser este o problema que carecia de urgência.
Em uma daquelas primeiras noites do mês, Ramiro ainda olhava para a escuridão do quarto, quando engoliu alguma coisa amarga que lhe deixou uma sensação de nostalgia. Disse a Tereza com voz velada e meio tensa que deveriam comprar um automóvel pelas razões obvias que ela conhecia.
¾ Conheço apenas o egoísta que é você ¾ protestou a mulher.
¾ Como egoísta? O carro será nosso ¾ respondeu em tom conciliador.
Teresa emburrou até a madrugada, dizendo que carro era luxo de que não necessitava, quando precisasse de um, usaria o coletivo. Ramiro insistia, com voz mansa, que tudo ali era dos dois, e os móveis, embora velhos, existiam, mas o que não existia para eles, era pelo menos uma carcaça enferrujada de algum automóvel que lhes servisse, e também o coletivo sempre estava lotado, indo na direção contrária a deles. Falou tão manso que a mulher adormeceu, aguardando a vez de falar e, no dia seguinte, com uma resignação de morte, o acompanhou até uma loja, onde compraram o objeto que haveria de transitar pelos sonhos dos dois com uma pressa moribunda e desoladora.
De início, Ramiro não se agradou da condição imposta por Teresa, porque achava que seus cabelos castanhos, sedosos e longos, poderiam insinuar disposição a qualquer hora para algum boa vida, ainda mais que seus olhos tinham um poder irresistível e sedutor onde pousasse sua luz. Tentou desconversar, fazer-se de surdo, mas a mulher insistia: “só compra o carro, se me deixar fazer a entrevista para o emprego no hotel Marvel”. Ansioso por comprar o automóvel, Ramiro cedeu, e ainda prometeu que somaria com o salário dela para trocar toda mobília da casa o mais breve possível.
Ainda naquela manhã, Teresa recebeu um telefonema da cidade vizinha, dizendo que sua mãe havia fraturado uma costela no guidom da bicicleta ergométrica. Ramiro se viu consternado por ver a esposa embarcar em um coletivo rumo à cidade dos pais, deixando combinado para que ele fosse buscá-la, com o automóvel, na manhã seguinte: “olha Ramiro, não vai se atrasar, porque tenho uma entrevista marcada para as três e meia, no Hotel Marvel”.
Com o imprevisto, Ramiro perdeu completamente a oportunidade para convencer a mulher a esquecer a idéia de trabalhar em um hotel onde só se hospedavam grã-finos empapuçados de malícia, gente vazia e ansiosa que se mete em qualquer assunto. Com isso, perdeu toda tarde, metido com os classificados nos jornais, à procura de algum anúncio de emprego para que Teresa não precisasse expor-se tanto como no hotel. Afinal, Ramiro, apesar de esperto no trato humano, não conseguia libertar-se de um sentimento possessivo sobre ela, imaginando que todo homem que se aproximava deles, era pelas curvas bem definidas da mulher.
Naquela tarde, o automóvel foi utilizado uma única vez, quando Ramiro levou Teresa até o terminal rodoviário. Depois disso, passou a tarde em casa, com o jornal nas mãos, olhando o carro estacionado no quintal. Havia em seus olhos uma lamúria silenciosa que lhe amargava a vida. Trazia Teresa flutuando sobre um lençol de cetim azul-claro, vestida apenas com um espartilho rosa, “malditos grã-finos. Que droga que nem se pode ter mulher perto desses merdas”.
À noite, Ramiro estava exausto por sua intriga interior, mas, antes de sucumbir ao sono, lembrou-se da despedida na rodoviária e não se recordou de antes ter visto Teresa mais bela e sensual. Sentiu por instantes agonizantes que talvez tivesse sido uma das últimas vezes que a teria visto com a inocente vista de fidelidade, e uma ponta aguda de dor e saudade fê-lo adormecer com o travesseiro entre as pernas, encolhido como um feto, flutuando num sono profundo que o levou até a manhã seguinte, quando acordou às oito e quarenta. Sem ter tempo nem para o desjejum, pegou a mala de contratos, que deveria ter sido entregue à Companhia, na tarde anterior, e rumou para o automóvel estacionado com aparências de ditador.
Poucas vezes Ramiro tinha sentido a desolação de ter sido enganado por ele mesmo. Ruminava isto, enquanto caminhava apressado para o automóvel que o esperava estático, como um soberano infame que não lhe permitia a possibilidade de negociar a felicidade. Pois só havia duas possibilidades que não se cruzavam: ou Teresa, ou o automóvel, “inferno! A Teresa não pode fazer isto. Aquele não é lugar para uma mulher casada trabalhar”. Ramiro sabia que era egoísta, porque Tereza lhe havia dito isto, mas experimentou pela primeira vez a sensação de ser estúpido. Passou a enfadar-se com o desconforto de olhar a imponência de seu automóvel, e o mesmo lhe causava a lembrança da mulher, porque havia falado muito manso ao ouvido dela e conquistado seu desejo, mais como diplomata do que amante merecedor e, como prêmio, tinha em seu poder uma bomba relógio que o tornava Senhor, até que se espatifasse junto ao último toque do seu bem.
Por hora, tudo havia ficado bem para Ramiro. Sentia apenas um desconforto leve ao imaginar o primeiro contato com Teresa, que deveria estar possessa pela raiva ao imaginar que o marido havia esquecido ou ignorado o combinado do dia anterior. Ramiro sufocava-se nas borbulhas do remorso e da raiva, por sentir-se vulnerável aos caprichos femininos e pela temeridade em afrontar os desejos da mulher, porque o assustou o gênero decidido e implacável com que lhe impôs as condições, deixando evidente seu poder de fêmea, capaz de arrebatar qualquer macho que lhe cruzasse os trilhos e contornasse o seu reduzido mundo. Mas a casa mobiliada, com tudo novinho dentro, parecia anular o poder afrodisíaco de Teresa, tornando-a somente sua, como era antes do automóvel e do Hotel Marvel.
No instante após o primeiro toque, Ramiro ouviu um alô angustiado e histérico. Teresa o lembrou de que era egoísta, cachorro e que não tinha nenhuma consideração por ela. Depois de alguns minutos, cessou a gritaria ao telefone, e Ramiro lhe falou novamente com voz mansa e pausada para que ela pegasse o primeiro coletivo de volta, porque havia em sua casa acontecimentos que se explicavam apenas de corpo presente. Teresa resignada pelos mistérios do marido, disse-lhe com debilidade que o corpo presente seria o seu na missa de recomendação de almas.
¾ Deixe de bobagens, não seja dura comigo, meu bem ¾ ele disse já em tom de vitória.
Horas depois, o casal já havia comemorado a alegria da volta à vida, e Ramiro também já começava a se chatear com as idéias novas da mulher que não a haviam abandonado. “Mas, Teresa, você não precisa trabalhar, tem tudo que queria. Veja os móveis novos”. A discussão entrou noite adentro, e Ramiro novamente lhe falara com sua habitual voz mansa sobre a felicidade com que devolveu o automóvel sob o pretexto de que não funcionava pela manhã, no momento de maior pressa, “foi Deus, Tereza, que me iluminou esta atitude, é nosso destino viver como era antes”, e, naquela noite, o amor e a dúvida deitaram junto ao casal. Tereza compartilhou com o marido a incerteza de que ficaria quietinha como ele queria, mas em ambos também acalentava uma sensação consoladora: nela o sabor do capricho satisfeito pelo esposo apaixonado, nele a idéia de cancelar a assinatura do jornal, na primeira hora do dia, para que Teresa jamais voltasse a ler os classificados e contaminar-se com idéias libertinas que agradavam apenas casais que tinham o lar vazio de paixão.