Amexeira

Quando fui morar com minha avó materna,meus pais estavam se separando.Três filhos,um lar desfeito,três novos lares!Eu tinha 8 para 9 anos,e não tive direito de escolha.

Fiquei longe dos meus dois irmãos,cada um foi para um lugar,longe de minha avó paterna(de quem eu gostava mais),de minha casa e meus amigos.Tudo era novo naquela casa para mim,sem sabor,regrado e sem novidades!

Minha avó era severa,sisuda e acreditava em disciplina .

Tinha agora que ter hora para tudo,chorava de saudades da minha vida anterior...Tinha saudades da minha bicicleta,da grama na frente da casa de meus pais,das margaridas plantadas pela minha mãe e as que nasciam miudinhas no meio desta grama,roxas e cor-de-rosas!Lá eu podia ver as famílias da janela do quarto,e chamar as crianças do outro lado da rua,que eram conhecidos e cúmplices em brincadeiras,artes e descobertas.

As casas eram geminadas,e naqueles anos,as pessoas costumavam deixar a porta aberta durante o dia,facilitando o trânsito entre as crianças.Só batíamos palmas,pedíamos licença e adentrávamos nas residências com toda a liberdade dos bem-educados!Corria o dia todo,explorava ruas vizinhas com as outras crianças.

Lá na minha casa,não tínhamos o controle dos nossos pais,que estavam fora trabalhando ,e acreditavam que as moças,as empregadas-babás, que estavam conosco em casa ,se importavam em saber onde estávamos,enquanto limpavam a casa ou cozinhavam!Meus irmãos e eu fazíamos o que queríamos.

Eu saia e inventava jogos,ficava horas vagando livre nas casas.Lia muito e acreditava em sonhos,queria ver o Peter Pan entrando pela minha janela,como a Wendy!

Tudo isso contrastava com o rigor da casa de minha avó,que agora virara meu lar...A casa era de madeira,pintada de amarelo-ocre, escurecida pelo verniz do lado de dentro,tinha móveis escuros na sala e quartos,tudo muito sóbrio e sombrio!A casa estalava de noite, eu acordava de sobressalto,com o coração aos pulos,pela primeira vez dormia sozinha em um quarto,sem minha irmã...criei horror ao escuro e muitas noites de pesadelo!

Aos poucos fui descobrindo vida ao redor de mim.O choro engolido pelos cantos da casa,dava lugar a curiosidade.Algo trazido no vento acalmava e me trazia paz:o cheiro das árvores!

A casa tinha um pátio enorme,cheio de árvores frutíferas,muitas desconhecidas ainda por mim.(Era raro visitar esta avó...ela sim,surgia,no Natal e aniversários,tornando a rotina da nossa casa mais tensa,com sua presença austera!).

Descobri abacateiros,bananeira e araceiro,pereiras,limoeiro,roseiras,

laranjeiras,bergamoteiras .Pitangueiras,ervas,pés de caqui,goiabeiras,

pé de abacaxi,goiabeiras e pessegueiros.

Uma vasta parreira com três tipos de uvas(branca,rosa e preta) que cobria metade dos 45m² do lado direito do pátio,sinamomos e um solitário cactus verde,viraram objeto de minha contemplação e curiosidade.Passava as tardes no pátio,explorando as árvores,vendo as flores perfumadas,cheias de abelhas darem lugar as frutinhas,que amadureciam e serviam para o nosso deleite,ao virar sobremesa em forma de doces ou alimento embaixo da própria árvore.

Minha paixão e preferida era uma amexeira.Ficava na parte mais baixa do pátio,ao lado do muro do vizinho da casa esquerda à nossa.

Era grande,tinha muitos galhos e dava ameixas amarelas muito saborosas,enormes,doces.Virava um prazer encher a boca com suas ameixas e cuspir os caroços sem se preocupar onde caiam!

A recomendação "lave as frutas antes de comer!" se perdia na pressa em devorá-las...era suficiente passar as ameixas na blusa,esfregando até tirar a fina camada daquele pó amarelinho que se acumulava e deixava áspera a boca desavisada que a colocava direto!Lustrava as frutinhas até brilharem,depois,tirava a casquinha,descobrindo a polpa doce e branca das ameixas,que então,como um delicado manjar à ser saboreado,sem pressa,iam para a boca!Doce delícia das tardes de verão!

E ela então virou minha amexeira,por decreto do meu coração!

Sempre tinha que dar uma paradinha e subir nela, quando ia para o pátio brincar.Seus galhos pareciam me abraçar,facilitavam minha subida.

Tinha um galho especial,que formava um "Y' e terminava em folhinhas macias e novos galhinhos.Era para onde eu levava uma almofada,

sentava ou deitava ali, e ficava longe do tempo,longe da dor,longe de tudo que me aborrecia!

A amexeira virou meu lugar preferido,meu paraíso,meu nirvana na infância!Diferente do "Meu pé de laranja lima",a amexeira não falava comigo nem em pensamento,mas me compreendia em sua generosidade, achava que seus frutos tão doces eram um presente para mim...ela tornava minha vida de criança insegura mais bonita, mais suportável,menos solitária...

Depois da almofadinha,comecei a levar livros,lanches,algo para beber,tudo para não ter que sair dali.Enxergava o mundo do alto,a nossa casa ,a dos vizinhos,ouvia os sons dos pássaros,galinhas,cachorros.Cheguei a cochilar no alto do galho muitas vezes.Deitava e era delicioso sentir a brisa no corpo,de olhos fechados,refrescando a pele quente,levantando os cabelos,enquanto os galhos balançavam docemente no verão!

Me sentia voar,e livres meus pensamentos me levavam ao país da felicidade,embalada pelo vento,no colo de minha amexeria!Era para lá que eu levava os cadernos de tema,livros para estudar para provas.

Ela era perfeita!Sentia ciúme de minha amexeira,e demorou muito tempo para convidar os raros amigos, que tinha feito na rua,e que minha avó permitia brincar comigo,para subir em seus galhos.Tinham que ser muito especiais para merecerem o privilégio...

Hoje,passados tantos anos,lembro com carinho da casa da minha meninice,da adolescência,antes de ser vendida.

Não tenho vontade de voltar naqueles tempos,ser criança ou adolescente de novo,os meus anos foram muito bem vividos!Mas quando fecho os olhos,e me reporto à infância,me lembro da minha amexeira,que foi arrancada pelo novo dono ,assim como muitas outras árvores da casa, para dar lugar a uma piscina...

Em meus sonhos,estou ainda no alto dela:ali é meu lugar,onde fiz meu castelo encantado de esperanças,meu território,meu país individual!

Ainda recorro à ela quando tenho dificuldades,é para ela que revelo segredos inconfessáveis,subo em seus galhos buscando inspiração,procuro refúgio em sua verde calma...Minha amiga querida,continua lá (onde sempre é verão,na Terra da Minha Saudade!),na minha mais pura e profunda memória,cheia de afeição,e continua a frutificar!

É soberba e generosa,distribui ainda,com amor,suas flores e frutos sobre as lembranças mais doces do meu passado.

Brigeth
Enviado por Brigeth em 23/02/2008
Reeditado em 13/12/2008
Código do texto: T871692
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