Antigamente o aniversário lá em casa.....

Nos anos sessenta e setenta, a maioria dos aniversários era comemorada em casa.... não havia a cultura, nem a grana (pelo menos na minha família) para se fazer festa "fora" de casa ( ir em restaurantes? Fora de questão! O McDonald´s chegou quando ao Brasil? ). Tudo era produzido em casa! Uma semana antes do dia da festa, minha bisavó se mudava para minha casa. Ela, minha avó e as demais mulheres da família,

começavam a preparar doces e salgados.

A cozinha virava o ponto nevrálgico do lar! O cheiro da calda de açúcar, fios de ovos, bolinhos em pão-de-ló, se misturavam e espalhavam pela casa inteira. Tudo era frenético! Para nós, virava a torcida ansiosa pela pá cheia de merengue da batedeira antes de ir para a pia. A sobra das massas de bolos, da latinha de leite condensado, colheres açucaradas, delícia!

Ajudávamos sempre na limpeza e na compra no armazém daquele limão que aparecia na receita e, na última hora, não tinha. Buscávamos mais ovos, tabletes de margarina ou de fermento Monopol ( e sempre faltava! ).

Queimar e quebrar à marteladas, depois ralar o côco, era tarefa que exigia atenção. Assim como no doce de laranja azeda, a ralação incluía um ou dois nós de dedos incompetentes como os nossos. " Filha, rala direito, viu só? Cuida isto, guria! ". Sangue misturado ao doce, pedacinho da gente incluído nas cocadinhas!

Olhar aquelas mulheres transformando elementos do dia-a dia em gostosuras, era inebriante! Nos atraía para a cozinha, numa estranha calma que nos fazia mais unidos, trégua inesperada entre irmãos, e eramos três capetas... Em paz, dividíamos o espólio da pia, a raspinha das formas.

Contávamos as colheradas de sobra doce que cada um comia! O tanto de xarope de groselha ou Q - suco ( era assim que se escrevia? ) que cada um tinha no seu copo era medido com quantias iguais, numa exatidão matemática que só se tem quando se é criança, e não se admite trapacear ninguém...

No dia da festa, acordávamos muito cedo. Crianças sonolentas e as mulheres nervosas cuidavam de arrumar a casa, deixar tudo cheirando a limpeza. Passavam óleo de peroba nos móveis e cera no chão. Tudo impecável, brilhando! O difícil era a gente permanecer limpa, impecável.

A roupa para a festa era sempre nova, feita pela costureira da família para a ocasião. Era bem passada, engomada, tinha botões pequenos demais para se abotoar e pinicava! Minha irmã e eu usávamos sempre o mesmo modelito de vestido. As vezes variava a cor, mas o mesmo penteado, mesmíssimo enfeite ou fita de cabelo,mesmo sapatinho e meias.Par de vasos legítimo!

Nossa tarefa final era encher balões. Ficávamos com a língua amarga, com sabor de borracha, de tanto soprar . Era um gosto horrível na boca. Tudo pra deixar mais linda a casa, com cara de aniversário!

O bolo, velinhas, docinhos, balinhas e decoração tudo ia para a mesa da sala, coberta com uma toalha de linho, branca, engomadíssima. Sempre tinha uma tia com um paninho de prato, sentada ao lado da mesa de vigia, abanando moscas que teimavam em aparecer na mesa, desfilando sobre o bolo antes de todo mundo.

Nós crianças recepcionávamos os convidados na porta, e o aniversariante recebia o presente lá mesmo. Aguentava beijos estalados e beliscões nas bochechas das tias, abraços sufocantes dos tios e tapinhas na cabeça dos primos debochados. Levava para o quarto " a lembrancinha",

abria, agradecia ao convidado (mesmo odiando ganhar mais um sabonete, meia ou talco) e colocava o que ganhou em cima da cama,

sobre o papel do presente cuidadosamente preservado depois embaixo do colchão...

Crianças vinham com seu pai ou mãe. E todos, educadamente, esperavam para brincar ou aceitar o que lhes era oferecido com o consentimento dos pais. Geralmente um olhar mais severo ou sobrancelha cerrada , gerava uma " não, obrigado! ",mesmo que o pequeno adorasse o doce de amendoím ou bandejinha com sanduíche e pastel que lhe era oferecido. Nada era aceito sem a aprovação dos adultos... Ninguém mexia na mesa, corria pela casa ou falava mais alto que os adultos!

Todos esperavam pelo parabéns, cantado entusiasmado pela família, para chegar perto do bolo. Meu avô tocava parabéns no saxofone, meu pai também. Meu tio fazia de conta que tocava, e desafinava no "..prá você!", num som agudo, irritante e gritante.

Era minha parte esperada e favorita, ria a valer! Soprava-se as velas antes de comer o que havia na mesa!

Depois corríamos pela casa, pelo pátio, esperando a hora de entrega dos balões, para jogar ou estourar os dos outros. O som da vitrola tocava longplays de Elis Regina, Roberto Carlos, Jorge Ben, Clara Nunes, Benito de Paula, Originais do samba e Tim Maia. Adultos, jovens e crianças dançavam com entusiasmo e leveza, incluindo as avós e tias numa movimentada ginástica de última hora. Nós os "pequenos" ,aprendíamos e ensinávamos uns aos outros, passinhos ensaiados, a voltinha elaborada. Tudo parecia permitido, liberado, enquanto os homens enchiam a casa com vozes e risadas alteradas, alegres da cerveja geladinha compartilhada.

As mulheres continuavam na rotina de servir a todos. A roupa engomadinha das crianças nesta altura da festa, ficava num estado lamentável! Na cozinha as mulheres, enquanto separavam em bandejas com empadinhas, pedacinhos de pizza, salada de batata com maionese e punhadinhos de galinha desfiada, dividiam segredos. Já deixavam o bolo com sagú ao lado dos outros pratinhos. Trocavam receitas, fofocas,

histórias cabeludas! Sabiam mais da vida umas das outras e falavam " de bem ou de mal " das amigas que não puderam vir.

No final do dia, ou da noite, o brabo era a limpeza. Apesar do cansaço, era feita rapidamente, com a colaboração de todos! Os móveis voltavam para o lugar, a louça era lavada em conjunto. As taças e copos de cristal eram colocada nas prateleiras da cristaleira. E a casa voltava ao seu normal, a sua rotina, ao silêncio tão ausente nos últimos dias, assim como a Cinderela, depois do baile! Cansada e feliz, sempre dormia como pedra nas noites de aniversário, meu ou de outra pessoa da família, sonhando, e muito, com a próxima festa!

Brigeth
Enviado por Brigeth em 22/02/2008
Reeditado em 26/08/2017
Código do texto: T870132
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