Um caso típico da mulher na década de 50
Maria, esse era o seu nome. Maria da noite, andarilho sem rumo, um farrapo humano, pedinte, esmolambada, sem eira, nem beira. Seu lar? A rua, as calçadas, marquises, bancos de praças, pontes, viadutos. Durante o dia se escondia nos vales, montanhas, campos; nos rios e cachoeiras se banhava. A sua história é igual à de tantas outras meninas, sua sina era andar, andar...Sem rumo pela vida a fora sozinha.
Seu pai a enxotou de casa aos gritos: menina perdida, cabaça furada, moleca ousada, menina da rua! Puxa fora, vá pra zona de madame Zuleide, virar quenga de coronel, mulher dama, garota de aluguel, prostituta! E lá se foi Maria, seus sonhos de menina-moça jogados ao vento. Sua cama quentinha, comida gostosa, roupa lavada por sua mainha... Nada disso teria mais. Sua mãe, mulher dominada pelo marido viu sua filha sair porta afora, sumir pelo gueto; as lágrimas rolaram pelo seu rosto enrugado, talhado pelo tempo. Nem um adeus, um olhar!
E lá se foi Maria, passos lentos, pensando no alto preço por uma noite de prazer, que se tornou numa noite de pecado na visão do seu velho pai, homem ignorante dos confins do sertão. Maria dormiu com Viriato, rapaz bonito, letrado, chegado da capital, que a levou na boa conversa, depois sumiu pelas festas, atrás de outras mulheres... Atrás do carnaval.
Chovia, e as gotículas frias da chuva molhava-lhe o corpo esguio, moreno, tão desejado e tão mal usado num momento de furor sexual, ato esse, que lhe proporcionou desgosto. Ao relembrar os momentos vividos com Viriato, o pranto no rosto se misturou à chuva, e a água que caiu do céu ajudou a colar a sua roupa ao corpo, deixando a silhueta desnuda. Não tinha para onde ir. Nas costas uma trouxinha de panos, um sapato e nenhum sonho, somente a vergonha, à vontade de morrer, de sumir. Tomou uma decisão: para zona não iria, seria uma caminheira disfarçada, suja, maltrapilha, emudecida, mendiga pelas ruas da cidade. Sua história ninguém jamais saberia!
Se alguém a visse, vestida daquele jeito, em farrapos, não a reconheceria nem acreditaria que, a Maria feia da noite, era a mesma Maria, bela, formosa que durante o dia se escondia na serra. Sua casa era a loca de pedra e o vasto campo, coberto de sempre-vivas era o local onde despida, corria. Costumava sentar a sombra das árvores e se refrescar no riacho de águas ferruginosas, mas fria e gostosa! Seu corpo leve e solto flutuava, enquanto seus pensamentos se voltavam quase sempre para o lar, a escola, os amigos... Agora só a solidão era a sua inseparável companheira. Pelos campos caminhava... Consigo mesma falava e em nada parecia com o andarilho da noite que ao relento, nas praças e marquises dormia. Jamais conheceu outro homem, fechou o seu jovem cabaço, considerava-o enlutado e culpado pela sua falta de alegria. O condenou ao desprezo, por não ter segurado o desejo, motivo do seu sofrimento, motivo de sua agonia.
Só comia o que lhe davam, como mendiga pelas ruas. Poucas pessoas para ela olhavam; sempre coberta de trapos, panos que encontrava em suas intermináveis andanças. A noite era sua cúmplice, conselheira, testemunha de tantos horrores, que via passar ante os seus olhos: dor, lágrimas, miséria, fome, frio, desalento, companheiros de infortúnio, filhos do medo, filhos da dor.
Seus pais? Jamais voltou a vê-los, que importava isso agora? Era simplesmente Maria, uma mulher, não a quenga que o seu pai quizera que fosse. Era sim, um kamikaze, brigava pela sobrevivência, pelo pedaço de pão, pelo espaço no chão, pelo anonimato, pelo esquecimento do passado... Era Maria, simplesmente.
Natal! A pequenina cidade do interior, florida e amena, de clima frio, cheia de bromélias, e orquídeas, cidade onde vivia e como seu pai dizia, se "perdera", e se escondia; ninguém sabia dela. Não a reconheciam com o rosto coberto de fuligem, cabelos desalinhados, pés descalços, latas e sacos amarrados pela cintura, só falava por gestos, às vezes grunhia...
As ruas cheiravam a sumaré, planta colhida nas serras, vendida nas feiras, nas portas das casas e nos cabarés.
Sentia saudades dos presépios, sua casa, seu lar, seus pais! Maria chorava...Chorava....
Resolveu ir ao campo e na loca de pedra, onde considerava o seu lar, deitou e ficou a devanear... Após certo tempo, apanhou debaixo da pedra, o vestido que usou na noite da perdição; olhou-o várias vezes, tocou-o e bruscamente jogou-o ao chão. Em passos lentos caminhou até ao rio e demoradamente tomou um banho, passou sabão no corpo, esfregou-o, esfregou-o, como a lavar a alma.
Nua, retornou, olhou cada pedacinho daquele lugar que por anos se transformou em seu lar, e como a se despedir, tocou delicadamente, as folhas do caminho, flores, pedras e tudo que, durante o período de isolamento se tornou parte da sua vida. Apanhou um pedaço de espelho achado em uma rua qualquer. Olhou para o seu rosto e pela primeira vez, depois do acontecido, penteou os longos cabelos e sorriu. Vestiu o surrado vestido, depois de desamassá-lo com as mãos, colocou o seu velho sapato guardado há tanto tempo esperando uma ocasião. E andou rumo a cidade, passos firmes, decididos, pensando, refletindo...
Era noite, a rua principal perfumada, fervilhava de gente jovem, os bancos da praça convidava a uma boa conversa, e os cânticos da Igreja Matriz ressoavam pelo ar fresco. Maria então pensou: era hora de mudar, de viver, de amar... Sorriu para se mesma, algo havia tocado-lhe o peito, despertando os seus desejos. O ar fresco e perfumado entrava pelas suas narinas inebriando sua alma; observou as pessoas indo e vindo, alegres a cantarolar num vaivém descontraído; abraços, beijos, sinos a tocar. Entrou na Igreja, o coração a palpitar. O coral entoava um hino de natal. As pessoas finalmente a reconheceram, e a abraçaram sorrindo, com amor filial. Sentiu-se protegida, de novo renascida, era NATAL! Maria, simplesmente voltou à vida afinal!