Bilhete sem volta
Frank abriu o jornal e deu de caras com uma notícia na qual se dizia: «Quatrocentos mortos num acidente ferroviário no país X.» Como eram oito da manhã e não lhe apetecia tomar o pequeno-almoço a ver fotografias de gente sem braços, sem pés, empurrou o jornal para o lado. Começou a comer.
Em cima da mesa, estavam os ingredientes necessários para encher um estômago: fiambre, queijo, pão, ovos, manteiga, leite, café, chá, sumo natural. Dentro dos seus respectivos quartos, dormiam duas crianças e uma mulher bonita, desejável. Na garagem, descansava um carro caro.
Frank não tinha fome. No entanto, há certas coisas que não necessitam da vontade humana para que aconteçam. O hábito, por exemplo, é uma dessas coisas. Não tendo vontade de comer, Frank comeu. Mas mais importante do que a comida eram os pensamentos que atravessavam a mente do homem.
A mulher e os filhos dormiam como anjos. O carro perfeito estava na garagem. O dinheiro enchia-lhe os bolsos das calças. Porém, Frank sentia-se dominado pela tristeza. Olhava para o jornal e sentia pena dos que passavam fome, dos pretos, dos asiáticos, das mulheres violadas, dos vagabundos, dos ateus e dos cães. Queria ajudar. Queria alterar a ordem do mundo. Mas como?
Pegou numa mochila, enfiou algumas camisas de linho lá dentro e pôs-se a andar. Atirou o telemóvel para o chão, escarrou num caixote de lixo e, num claro sinal de convivência mundana, pôs os intestinos a cantar. Estava, realmente, apto para salvar as crianças africanas.
Passado um ano, Frank voltou à casa de onde partira. Em doze meses, fora roubado, torturado, violado, espancado. Em África, haviam-lhe tirado tudo o que levara de bom (o optimismo). Queria voltar ao ponto de partida, isto é, ao momento em que abrira o jornal e dera de caras com os mortos.
Dirigiu-se ao quarto da mulher: dormia. Os filhos também dormiam. Quando procurou a poltrona da sala para descansar, reparou que as fotografias penduradas nas molduras das paredes eram outras. A sua esposa, a mulher com quem perdera a virgindade e quinze anos de vida, aparecia em todas elas ao lado de outro homem.
Nada poderia voltar ao mesmo.
Frank já não era ninguém dentro daquela casa. Não passava de uma memória alegre de tempos antigos. Na prática, já estava morto.