Farelos de felicidade
Dois anos, quase três. Pouco sabia de nada. Sabia, porém, que estava só. Estranhamente só diante de tantas pernas conhecidas. Estava na casa da fazenda. Via sua mãe com uma mala na mão caminhando apressada pela estrada poeirenta. Os nove meses de intensa e interna convivência, não valeram nada. As lágrimas placentosas de sua face, tinham dois gumes cortantes e gelados. Seus gritos reverberavam pelas colinas, mas não afetavam o coração da retirante. Como fugitiva sem perseguidores, desapareceu para além da mata.
A avó incrédula, segurava uns papeis e um rosário. Lamuriosas ave-marias, num tom consternado de despedidas sepulcrais. Ninguém ousou tocar no menino, que permaneceu agarrado ao portão de madeira, lágrimas teimosas molhando a poeira do chão, e olhar perdido na desértica via que levava sua mãe ao fim do mundo. As memórias escassas mais lúcidas, de um colo quente, de um útero protetor, se esvaiam junto a espera que se estenderia por mais uma porção de vidas de agora tinha.
Quase três. Era verdade. Depois de as pernas cansarem de segurar o corpo e o portão, desabou sobre a grama. Olhava o azul do céu imaginando onde tudo aquilo terminaria. Havia um mundo após o rio. Achava que o fim do mundo era lá onde as montanhas tornam-se azuis. Deveria ser onde o céu toca o chão. Um dia ainda chagaria lá para ver de perto como o mundo terminava.
A noite ia caindo mansamente, deixando o céu negro, com furinhos para o sol espiar, as pessoas estranhamente chamavam cada olhinho do sol de estrelas. Adultos são estranhos. A lamparina acesa pendurada no teto, fumacento do fogo de lenha, deixava o ambiente turvo. As pessoas estranhamente conhecidas, ficavam fantasmagóricas naquele lusco-fusco, e falavam uma língua monstruosa que ele não conhecia. Sabia no entanto que o paparicavam, como tolo, pobre menino pobre, desprovido de lar.
Só na hora do jantar, mais calmo, mas ainda triste, perguntou pelo pai. Que era pouco presente, via-o de tempos em tempos, imprecisos, não sabia contar o tempo, ainda, mas se fascinaria por ele anos mais tarde. Mesmo que o tempo teimasse em fazê-lo de marionete sem fios, jogado num canto pelo vendaval da vida, sem respostas, e as perguntas rareando. Todos se entre olhavam pigarreando. O homem idoso na ponta da mesa, fumava um cigarro fedorento, um outro de voz esganiçada, seja lá o que isso queria dizer, diziam ser um parente distante, fumava um outro daqueles de matar mosquito, como ele mesmo dizia. Duas mulheres, na penumbra no outro lado da mesa, uma moça ao seu lado, só o olhavam com pesar e consternamento.
Somente quando uma senhora gorda, com uma idade bem avançada, a quem todos chamavam de Nona, entrou na sala de jantar com uma travessa de macarrão recebeu a resposta.
- Eles virão te buscar assim que acabarem de fazer a casa.
Aquelas palavras ecoaram por dias na sua cabeça. Assim como as que sua mãe dissera na saída.
- Eu volto para te buscar daqui a quinze dias.
Passaram-se meses. Depois de alguns dias, já estava mais habituado ao lugar. Já quase esquecera da cidade, nem contou os dias, não sabia contar, mas dias e dias ficava afincado no portão, olhando a ponte, e vendo a água passar, sem saber para onde ir, estava como o rio. Não sabia para onde ia.
Nem sabe ao certo quando foi, nem quanto tempo tinha se passado, provavelmente já estava perto de seu aniversário, pois a Nona e uma tia discutiam a data certa para comemorar os três anos do menino, sem saber porque ainda comemorariam uma data passível de esquecimento, seu pai apareceu. Estava pequeno demais para viver. Depois de árdua discussão, partiu com seu pai. Veria o que tem depois do fim mundo, lá além das montanhas cinzentas, quase azuis. Seu pai lhe pôs sobre os ombros. Sentia se grande novo. Nem pensou mais na mãe, a felicidade era farelo de salgadinhos sobre o cabelo do pai.