Um dia de síndica
O cargo de síndico(a) ninguém quer. No que faz muito bem!
Morando há quinze anos no mesmo prédio, ela desconfia que já lhe concederam o "cargo de síndica vitalícia".
Aqui as coisas caminham em relativa calma. É uma pequena comunidade de nove unidades distribuídas em três unidades por andar, o que perfaz três andares.
O edifício é velho, mais ou menos trinta e cinco anos de construção. Sólido, não fosse o desgaste natural do tempo, afetando encanamentos e fiação elétrica.
Fogo, nunca pegou, a não ser a própria cozinha da síndica, quando explodiu o fogão, mas isso já faz alguns anos. Fato esquecido. Sem mortos ou feridos, a não ser o causador do sinistro (o malfadado fogão), que jaz em algum ferro velho. Inundação? Algumas. Por conta de telhado, caixas d'água trincadas. Aliás, o sistema de distribuição de água é original. Uma caixa mestra distribui água para mais cinco caixas que abastecem as alas de cozinha e banheiro dos andares. Interessante, porque desta forma, sempre se tem água em uma das duas dependências. Desabamento... Só aquela vez que deu cupim no estuque do último andar, acarretando a troca do forro dos três apartamentos e área de circulação. Um pequeno contratempo, que durou por volta de mês e meio.
O convívio é pacato. Mas algumas divergências entre o prédio e os moradores, às vezes acontecem, e, neste caso, descobre-se que existe uma síndica!
E quando a síndica, por qualquer motivo, passa alguns dias gozando do conforto de seu apartamento, pressente-se mais do que se ouve o murmúrio que corre num crescendo: "A síndica está no prédio... A síndica está no prédio!"
É fatal! A velha construção resolve reivindicar manutenções que lhe são de direito, os condôminos descobrem o "poder da síndica". Então, começa.
A faxineira toca a campainha e, na sua malemolência mineira, comunica que tem algum vazamento na área de serviço.
Desce então a eficiente criatura para verificar o fato. Examinando aqui e ali, depois de alguns testes com o registro do relógio d'água, o veredicto: "Estamos com vazamento grande na rede de entrada"!
Consultada a agenda de profissionais prestadores de serviço, aciona o encanador. Este chega num sábado, examina e concorda com o veredicto. Confabulações são feitas e conclui-se que uma nova rede deve ser providenciada. Fica marcado o início do serviço para a terça-feira. Enquanto isso, é feito um arranjo temporário, para que não falte água no prédio.
O domingo corre tranqüilo. Mas na segunda-feira...
O telefone toca insistentemente:
- Alô...
- Dona Asta, aqui é Vitório, do apartamento dois.
- !
- Sabe... Estamos sem água no banheiro.
- ?
- Está assim desde ontem.
- Já vou descer, "seu" Vitório.
Desce, estremunhada de sono, verifica ser o fato verdadeiro. Vai observar o relógio da água. Está entrando água no prédio. Caindo por terra sua primeira suposição de que o problema seria da SABESP, corre a consultar os demais moradores e certifica-se de que todos têm água, menos os banheiros da ala dois! "Mistérios da meia-noite..."
Pensa no que fazer e decide:
- Terão que ter paciência até amanhã, quando virá o encanador.
- Mas como ficaremos sem água?
- Tem na cozinha, não tem?
- Tem.
Ela, com ar maternal, explica:
- Então é só carregar água da cozinha para o banheiro... E, quanto ao banho, terá que ser de caneca!
- Mas...
Um só olhar ameaçador que traz implícito: "Quer pegar o cargo?!" e todos, consternados, concordam:
- Bom... Se o encanador vem amanhã... Paciência, um pouco de sacrifício não faz mal...
"Droga, que será que aconteceu? Vai ver, encantou a bóia... Amanhã "seu" João resolve."
É interceptada no caminho de volta, pela moradora do apartamento treze:
- Bom dia!
"Não sei onde..." E com um sorriso: - Tudo bem?
- Eu queria lhe pedir para falar com o menino do apartamento três... Sobre a bicicleta e sobre a bola...
- ?
- É que ele entra e sai montado na bicicleta, quase atropela a gente quando estamos passando no corredor... E a bola que ele fica jogando no quintal, bate na parede, está descascando toda a pintura, além do barulho infernal! (Os apartamentos do andar térreo possuem o privilégio de um quintalzinho). Nesse instante, para felicidade da reclamante, vai passando o guri em questão:
- Thiago!
O pobre indefeso, interpelado tão rusticamente, permanece estático, preparando-se para a bronca, que - tem certeza - virá.
- Meu filho... (acentua o ar maternal) Já lhe pedi várias vezes para não sair "montado" na bicicleta...Tem que conduzi-la na mão... Você está atropelando as pessoas e deixando marcas de pneus pelo chão... A faxineira reclamou...
O moleque, após novas promessas de não mais repetir os feitos, sai vitorioso porta afora, pilotando sua possante Bike.
- Criança é um caso sério. Coitados, presos em apartamentos...
- Meus ouvidos também são um caso sério...
Despede-se então da vizinha, já quase desfazendo o sorriso, quando tem que atarraxa-lo novamente:
- Bom dia, Nancy... Tudo bem?
- Ah! Foi bom ter encontrado você... Queria que falasse com a Cléo, para não colocar o som tão alto... É um horror! Quase não ouço a minha televisão!
- Tá bom... Vou falar com ela.
O sorriso, agora já totalmente desfeito, transforma-se numa verdadeira carranca quando chega ao seu andar. "Que meleca é essa agora?" Toca a campainha do apartamento vinte e um:
- Oi, Asta! Aparece a vizinha sorridente a segurar um vidro de Ajax numa mão e um paninho na outra.
- Isso aqui é seu? Aponta para um enorme tapete colorido, que está secando na mureta da escada.
- É sim...
Tentando manter a calma.
- Não pode. Já imaginou se todo mundo resolve colocar as coisas para secar nos corredores? Tapetes, almofadas...
Com ar surpreso, talvez porque a idéia não lhe tenha passado pela cabeça, a moça concorda.
- Já vou tirar, é que estava limpando o chão, então...
- Outra coisa, Cléo, a Nancy acabou de reclamar do som alto...
- Ah, tá... Vou abaixar.
Entra então em casa e a intenção que tinha de voltar para a cama, já não existe.
Prepara um café e, quando começa a tomá-lo, o telefone toca.
- Asta?
- Oi, Regina...
- Será que dá pra você pedir pra Cléo tirar o tapete dela da janela, que está pingando na minha roupa aqui no varal?
"Santo Deus!"
Larga o café pelo meio e está quase com o dedo na campainha, quando se abre a porta do apartamento vinte e dois.
- Bom dia, dona Asta!
- Oi, Mário... Tudo bem?
- Ah! Eu queria ver quando a senhora vai mandar arrumar a luz da escada, porque por duas vezes a Sueli chegou à noite com o bebê, e como a escada fica um pouco escura, ela tropeçou e...
- Vou chamar o eletricista hoje.
Assim o fez, porque na verdade este era um problema antigo que já deveria ter resolvido. Passou o dia entre orçamento de mão-de-obra do profissional e casas de materiais elétricos. Resolvera trocar as luminárias.
No início da noite toca o telefone:
- Alô?!
- Asta, é Carla...
- Tudo bem?
- Estou sem água na cozinha...
- Amanhã o encanador vem aqui... Tenha paciência até amanhã, está bem?
Cansada e dolorida, pois, afinal, não está de férias, mas sim se recuperando de uma cirurgia, ela acomoda-se no sofá e prepara-se para ver televisão.
Já passa muito da meia-noite, quando é bruscamente despertada da sonolência (acabou não vendo o final do filme). Ouvira um barulho estranho, mas forte. Percebe que algumas luzes acendem-se nas janelas vizinhas. Vai até a área de serviço e verifica, consternada, que um dos vasos que estava no parapeito da janela, não está mais lá. Vai então até a janela e olhando para baixo, consegue identificar o pobre estatelado no quintal da vizinha.
"Tsc... Amanhã resolvo isso."
Fecha a janela, porque está ventando muito, apaga a luz, a televisão, pega seu travesseiro e dirige-se para o quarto.
Afinal, os síndicos também dormem...