A MENTE É O PRÓPRIO LUGAR
"Conforme acreditares, a ti será dado."
(Provérbios)
Quando o primeiro relâmpago riscou o céu, Zé catou as ferramentas e lançou-as ao fundo do paiol.
___ Vai cair água!
Fazia tempo que nuvens escureciam o dia, acabrunhavam os homens e forçavam os passáros a voarem baixo.
"Seu" Pedro apressou-se em descarregar a areia contida na carroça, serviço que ainda estava pela metade.
Trabalhava e, ao mesmo tempo, falava com a égua frases de pouco sentido, num tom modulado, para tranqüilizá-la.
Hábito de quem convive com animais.
E veio a água.
Grossos pingos absorvidos de imediato pela terra seca.
"Seu" Chico, já dentro do paiol, começou a catar as ferramentas pelo chão, colocando-as nos respectivos lugares, organização necessária para localização no dia seguinte.
Depois, sentou-se na plataforma do triturador de milho.
Ficou a olhar a chuva, que aumentara e começara a escorrer pelo desnível do chão.
Zé, abraçado ao cinzel e ao prumo, correu também para o abrigo e acocorou-se frente à chuva, rente à porta.
Sem pressa, "Seu" Pedro terminou de descarregar a areia, desençilhou a égua e levou-a consigo junto aos demais.
Deixou a carroça no terreiro, com os varais virados para cima, para ser lavada pela chuva.
Buscou napiê, cana triturada e farelo de milho e colocou no coxo.
O animal balançou ligeiramente o dorso, respingando água, assoando as narinas de satisfação.
Seu dono ficou ao lado a acarinhá-la e a escová-la.
A chuva continuou a aumentar de intensidade, somada agora às rajadas de ar, que impuseram movimento ao cenário de coreografia das incertezas e sonoplastia dos trovões.
No céu negro, de quando em quando, raios riscavam e transpassavam nuvens, iluminando por breves instantes o espetáculo da natureza.
Tudo era fúria;
força de Deus.
Apequenou os homens.
O paiol rodeou-se de enxurrada, lama, detritos e folhas secas.
Do chão brotou o aroma de terra molhada;
barro que moldou a criação.
____ Chuva de verão... passa logo.
Não passou; continuou a aumentar.
Os homens mantiveram-se quietos.
No canto, rente a porta, Zé apresentava sombra e treva.
Ombros derreados.
Havia razão para a infelicidade.
Dias antes perdera um filho jovem, casado e com a mulher grávida.
Fatalidade da vida;
tragédia sem sentido.
Ao silêncio, opôs-se "Seu" Chico:
______ Pedro, há quantos anos é viúvo?
______ Cinquenta e um, completado no mês passado.
Zé despertou da introspectiva:
______ Muito! Quando ficou viúvo?
______ Tinha dezenove anos. Minha mulher completaria dezoito; morreu durante o parto da nossa segunda filha.
______ Por que não casou-se novamente?
Não houve pressa:
______ Porque sou e não sou viúvo.
"Hoje não importo contar.
A velhice me faz imune a melindre."
"Minha mulher partiu ao amanhecer, após o nascimento da nossa filha.
Foi um triste dia; e feliz também!
Sentimentos opostos, amor e tristeza, ocorridos no mesmo momento, difícil de separar.
Uma vida chegou ao mundo; a outra partiu.
Minha mãe ajudou-me a criar as crianças."
"Sentia-me só; haviamos casados para a vida e para a eternidade."
"Trinta dias!
Nessa última noite cochilei; acordei com ela ao meu lado:
____ Sentiu saudades?"
"Desde então, ela torna sempre;
e vai-se embora toda manhã."
Incrédulo, Zé balançou a cabeça.
A tempestade deu mostra de aumento; lançou água nos homens e a lama ameaçou invadir o paiol.
Os homens não arredaram pé.
Permaneceram frente à ela, hipnotizados pela Sua grandiosidade.
A pouca distância, um ipê se destacava, fixo e firme ao solo, graças ao seu cerne e as suas raízes vigorosas.
Folhas e galhos expostos à fúria.
_____ Quando comprei a propriedade, há muitos anos, desejava derrubar essa árvore. Ocupava espaço e atrapalhava meus planos de plantio.
O tom de voz do "Seu" Chico era pacífica:
"Um dia, meu tio veio com a família para ajudar-nos.
Não tinhamos filhos e não desejávamos tê-los.
Descemos, eu e ele, para derrubar o ipê, levando na mão a serra zig-zag.
Já era uma árvore adulta, bem talhada, de caule grosso."
"Posicionamo-nos um de cada lado, segurando o cabo de manete.
Vai e vem; a idéia era serrar sem pressa."
"No primeiro movimento, um enxame de marimbondos, oculto no tronco, atacou-nos.
Saimos à toda, dando tapas no corpo e rolando pelo chão.
As mulheres vieram ao nosso socorro e passaram pó-de-café úmido em nossos ferimentos."
"Ficamos com os rostos pintados de preto;
rindo e zombando um do outro."
"Foi este o primeiro momento alegre,
após muitos anos!"
Pausa.
Os homens perceberam, pelo dureza da voz, o novo rumo da conversa.
"Papai e meu irmão K., onde estão vocês?
Espero em casa, são e salvo."
"Espalhei anúncios iguais a este pela cidade."
A atenção dos homens já não estava na tempestade:
"Salvou-me o acaso.
Fomos dispensados do colégio e escalados para escavar trincheira.
Temia-se a invasão americana."
"Meu pai, como sempre, partira cedo para o trabalho;
meu irmão e eu saimos logo após, levando pás.
Mamãe ficou em casa;
beijou-nos antes que partissemos."
"Percebi que o pneu da minha bicicleta estava murcho;
disse ao meu irmão para continuar;
voltei para enchê-lo.
Ao descer ao porão, um clarão silencioso apagou-me a consciência."
"Despertei ao entardecer e encontrei, nos escombros, o corpo da mamãe.
Sozinho velei por ela e, no dia seguinte, sepultei-a sob o que restou da cerejeira que tinhamos no quintal.
Era sob ela, que todos os dias, meus pais faziam as suas orações."
"Duas semanas durou exclusivo o sinal da maldade.
Das cinzas, por todo lado, começaram a brotar capim, carrapicho, arroz, flores silvestres; toda sorte de semente lançada ao solo."
"Nos galhos negros e aparentemente sem vida da cerejeira, surgiram dezenas de brotos e folhas verdes."
"A bomba que semeou a morte;
trouxe consigo também a vida.
A radioatividade estimulou os grãos sepultados;
e despertou o que antes era morte adormecida."
"A paisagem modificou-se; o negro e o cinza, dividiu espaço com o verde e o florido da felicidade."
"Imigrei para o Brasil, onde já estava meu tio;
casei-me;
tenho filhos e netos sadios."
"No dia da fracassada derrubada do ipê, antes de partir, meu tio disse-me:
_____ Lembre-se dos seus pais.
De quando oravam sob a cerejeira.
Do quanto acreditavam que ela abriga o espírito dos ancestrais.
Lembre-se da sua mãe, cujo corpo ficou a alimentar a árvore.
Creia que a vida se renova;
imagine a natureza,
instrumento de Deus na criação;
e que dispôe de recursos e regras próprias.
Pense que nada ocorre por acaso;
que o sonho é extensão da realidade;
por alguma razão o pneu ficou murcho;
por outra, também, os marimbondos abrigaram-se no ipê."
"Passei a orar sob essa árvore.
Todo outono, ela perde as folhas e recobre-se de flores brancas, delicadas e perfumadas;
diáriamente determina a minha fé e a minha vontade de vida;
apesar de todo o passado."
Neste ponto a tempestade havia terminado.
"Seu" Pedro enlaçou a égua com uma corda e levou-a para o piquete, onde o animal passaria a noite.
Antes de sair, "Seu" Chico, tocou suave os ombros do Zé:
____ Seu filho vive, mas de outro modo.
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"Seu" Pedro, nasceu em Almeria e faleceu em Guararapes.
"Seu" Chico, nasceu em Hiroshima e foi um hibakusha, pária contaminado pela bomba e proibido, pelo preconceito, de casar e deixar descendente.
Está sepultado em Araçatuba.
Zé, circula pela cidade;
gosta de declinar todas as semelhanças: de comportamento, de gesto, de gosto e de aparência;
para depois dizer que o neto é o filho que ele,
milagrosamente, recebeu de volta.
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Entre os anos vinte e cinqüenta, do século passado, Araçatuba e região receberam milhares de imigrantes, vindos de várias origens.
Muitos fugindo das suas tragédias pessoais.
Vieram em busca da superação e de nova oportunidade.
Acreditaram que mudando de lugar, de amigos e de cultura, encontrariam maior facilidade para construir e redimensionar o próprio destino.
A maioria conseguiu.
Creio, porém, que a mente humana tem seu próprio tempo e seu próprio lugar.
Nela construimos e reconstruimos nossos sonhos e renovamos a esperança na humanidade.
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Araçatuba-SP, 31/01/2008
Obrigado pela leitura.