Camaleão no escuro

Mais um dia de trabalho aquele. Chamaram-me a atenção por está tão vazio de mim, sem ar de hiena que empanturre outrem. Lá, na escola em que trabalhava (não sei se da vida ou dos homens), andavam a dizer que estava biruta, às avessas, pensando ser Nietzsche, eu-louco, uma encarnação da filosofia insana. Mas ai de mim, uma peça disforme, chinfrim, lombriga desvairada! Sequer notavam meu esforço mínimo na procura do equilíbrio estável. Será que não viam que dentro de meu peito existia um pulsar que não era deste mundo? Às vezes pensava que não era daqui, talvez um ser emprestado a esta raça estereotipada e ferro. Em minha formação havia de se perceber tão simplesmente a massa maleável, sensível ao aço, minério de minha miséria gradativa. Uma aversão a todo minério-metal saía de mim, naqueles dias, como um ímã de uma bacia de ferro puro, e minha sina era só uma: ser bruma a vagar pela atmosfera tosca do universo, flutuando feliz por cima dela, sozinho, mas humano... Andava eu, pois, a falar das coisas do universo, de Deus. Mas, quem me ouvia? Absolutamente ninguém. Talvez por isso sentisse tanta saudade de Aurelíades. Ela, sim, me escutava, dava-me crédito, embora às vezes repulsiva. Àquela altura eu dizia coisas, e, logo, era louco. Riam de minha cara, e faziam piadas grotescas comigo "alienígena, saca sua pistola e nos ejete o raio de sua demência. Também queremos passear no seu mundo, só pra sabermos os mistérios que emanam de você". É... Isto e muito mais vinha me castigando mesmo quando estava debaixo de água fria ou escarafunchando insetos sob a areia beira-rio, o Rio das Almas. Nem Emulsão nem vitamina C para me soerguer daquele meu estado decúbito. Comigo tinha lá algumas noções cambaleantes acerca de minhas possibilidades. Possibilidades de um homem que tentava sobreviver transferindo para os outros certas noções igualmente cambaleantes. Os meus pés agora já emergiam alguns centímetros acima do chão. Espécie de plasmas a rondar minha estrutura corporal ossada, destituída da correta postura de andar, eu corcunda de Caiápa e não de Notre Dame, como assim também murmuravam de mim, entrementes. Todos, inclusive o débil mental Zoim, paranóico que se diz Napoleão Bonaparte, ficavam a me espreitar nas esquinas e sondar meus acessos de estrangeiro de outro planeta. Aceitar não aceitava que falassem a respeito de meus gostos, que eles eram meus acima de qualquer coisa. Gostava de limão, e aquilo me fazia bem. Adorava cebola, e com ela podia chorar mais facilmente. Lecionar não era minha vida, assim como não é minha vida este (e)xato instante em que me percebo gente mesma, e me pego súbito a respirar. Fazia o que fazia justamente por não querer fazer: pirraça! Uma espécie de força que me aparecia ao executar ações a contragosto; sozinho, no total desamparo da moçada mais desumana que por aí rondava aborrecida. O problema talvez estivesse no mecanismo de meu ser esquelético, sensível ao mórbido espanto que os caras-pálidas podiam proporcionar apenas com suas aparições. Onde estavam meus irmãos? Eles que pareciam haver se voltado contra mim rebelde, em tentativas de me chantagearem até que eu os procurasse, levando-os para o aconchego de meu santo lar, onde me fiz criatura a(bis)mada? Já, tão caído, tomam-me a crista certas emanações de tempestade fosca, um brilho desconexo de meu semblante azedo, mesquinho, em começo de aparentar carranca de homem chato e molenga, sem aquele embalo intrépido de encarar a sombra pontiaguda do desconhecido. Já não conseguia olhar para os olhos das pessoas e não sentir uma comoção. Meus aprendizes assumiam agora uma forma de súplica que me deixava imóvel, sem forças para levar-lhes à face a mão descarnada pelo giz metálico. Pensava seriamente em desistir de continuar ante a banal cena em que um aluno dormia sobre o livro aberto, como que o abraçasse, pedindo-lhe clemência. Entretanto, aquele brado sempre vivo, esganiçado, gritando de dentro de minhas cavernosas veias, continuava sob forma de emanação contagiante, dizendo-me que eu devia seguir em frente, que logo depois de alguns minutos as crianças acordariam, e então cairiam em si, de supetão, para o bem maior de todos. Isso mesmo, elas iriam compreender que nem tudo o que se deve aprender é para ser aprendido, que existe um desejo recíproco entre nós, e por isso, a vã luta, a rebelião dos corpos. A clara percepção de que o problema persistiria era a ordem que se incitava aos nossos corações mutantes. E não sabíamos sequer se haveria o amanhã depois do meio dia, quando muitos se sentariam à mesa para almoçar, o pensamento apenas reflexo de uma querência absoluta de não querer ser tão dependente assim de carne vermelha, ovos fritos e arroz com feijão. A grande questão dos dias que nasceriam a partir daquele, e de outros, seria acordar e me dar conta de que ainda estava vivo, solitário e casmurro. Foi meu papagaio Papas quem me acordara à labuta, a um sonho desperto toldado por uma utopia que me animava, no entanto. Um sonho de querer mudar o mundo invadia-me sobremaneira. Um fogo me movia sobre e contra as intempéries da realidade bruta, tantas vezes maldita e cruel... Querer, àquela altura, era poder e ter, por um momento, a oportunidade de sorrir, um tico que fosse. Agüentar a barra era necessário. Era necessário também, às vezes, morrer um pouco de amor e abnegação, porque ser professor era, antes de qualquer coisa, ser anjo. E acho algo dos céus esse negócio de se abster de si próprio em favor de uma alma que se vê desvalida em meio ao lodaçal de um corpo imundo que suplica água limpa. Esse o motivo que incita meu desejo de continuar a ensinar, aprender e sonhar... Isso mesmo. Minha vontade maior de ir até o presidente da república pedir que aliviasse a barra, que não cobrasse tantos impostos, tarifas e tales coisas mais. Que criasse em seu coração pedra uma sensibilidade tal que o distinguisse dos demais seres da nação. Isso mesmo. Isso era o que me dava vontade fazer quando acordava seis horas da manhã para ir à escola lecionar. Lecionar o quê? É o que pergunta, não é mesmo? Oras: lecionar mundos! Coisas do cotidiano simples e acessível às crianças. Mostrar-lhes o quão preciosa é a vida, muito embora não achasse eu que ela fosse tão preciosa assim. Mas necessário era deixar explícito que o importante era não desistir. Que todos deveriam fazer o melhor de si para conquistarem outros planetas, quem sabe. Segui adiante com meus gestos e estros cambaleantes, sem ponto certo onde pousarem. Ver passarinho voando era me libertar de certa forma. Sonhar com eles, os pássaros depenados, que fosse um tico apenas; parar e pensar sobre as conseqüências dos demasiados suspiros ao anoitecer... O que será pensavam as estrelas, vendo-nos cá embaixo em absorção e delírio? E para cada dia havia uma noite. E para cada noite, um mistério. Uma solidão áspera que mexia com o nosso eu mais inacessível. Havia, meu amigo, um medo. Sim, um medo que é naturalmente típico de nós. A morte, o ar obstruído pela vontade maior de Deus... Cada noite era verdadeiramente um misto de angústia e longos pensamentos. Pensamentos que iam longe e depois voltavam, recolhendo-se logo ao meu real estado de impossibilidade, recolhido a eventuais intempéries. Deveras que era a noite o medo maior... E na maioria delas via-me sozinho em casa, fritando batatinhas. Algo me angustiava, sim. Acaso angustiava você também? Devia, não é mesmo? Lembro estar em casa sozinho, certo dia, matutando. Sozinho, fritando batatinhas. Andando pelado? Não, sem camisa. Soltava a voz em canto profundo, porém desafinado. Algo me angustiava. Mas, a porta fechada... Lá fora, o vento silencioso da noite uivando mau-agouro. Estava frio lá fora, cá dentro estava frio um pouco. Abria a janela e dava uma espiada, procurando alguém que passasse pela rua. Mas, àquela hora? Nem besouros à luz do porte haviam. Cachorros famintos e com peladinha haviam, embarafustando-se no latão de lixo. Imaginei ver pela rua uma galinha depenada... Coisas eu via. Assombrações escondidas atrás das árvores e outras sombras mais. Aí, então, gelava-me, pois eu estava sozinho. Angústia minha maior por isso. Ninguém por mim senão Melquior, Brutus e Papas. Angústia minha maior por isso também. Gritar eu queria, socar a parede com os punhos, chamar por mamãe nas alturas do negro céu friorento. Sentir-me vivendo eu queria. Dormir: esse o meu objetivo em ascensão. O que fazer, porém, se os meus olhos não se fechavam nem por segundos? Insônia. Medo de adormecer e ter pesadelos. Medo de ser devorado pelo bicho-papão. Alguém talvez aparecesse cá em casa. Diminuir a falta de vontade para a vida... Este o meu desejo escondido embaixo do tapete, a minha querência gigante, porém passiva. Nem um tico de entusiasmo tinha para tentar consertar a TV avariada, nenhum ânimo para entender seres virtuais, aparentemente satânicos. O telefone mudo tempotodo. Nem vontade minha também de ligar para os amigos de outros tempos, de outras antigas andanças, quando eu era ainda moleque atrevido e de peito-aberto, desbravador. Era o cansaço. Dor de barriga para piorar a situação, suor escorrendo pelos olhos, a amargar uma miopia estranguladora do que chamo de visão-além. Não bastasse uma quase iminência da loucura, da fuga desta esfera, vinha ainda incomodar a minha paciência o complexo jogo labiríntico que é amanhecer e passar bem o dia, mesmo com leves tropeços, com brutos confrontos. A súbita impressão de que estava certo, imune, fora de mim a culpa. Disto, desta minha mania de Kiko, resultou a constante sensação de estar falando sozinho, às vezes com as formigas. Elas me entendiam. Sentia isto. Quem mais me entenderia hora daquelas? Por acaso seus anjos, quando nem os meus me apareciam ao menos? Preocupar comigo era inútil. Perca de tempo, de salivas e calor próprio. Dispensava preocupação. Dispensava, ouviu? Queria mesmo era ficar em casa zanzando, sozinho, descobrindo-me, embora tardiamente. Eu, aquela explosão atômica em mutação contínua, chateado com aquela vida e já casmurro precoce. Eu, aquele mosaico que confundia os olhos de qualquer um. Personificados em mim estavam todos os sentimentos animalescos, camaleão camuflado contra si próprio - eu! eu! eu! Ué!? Bem. No estômago da noite era, às vezes, impossível não me preocupar. Certo era que ia amanhecer, e então a aurora nos revestiria de um novo entusiasmo. Mas, enquanto a aurora não se despontava, difícil era não continuar beijando a noite, para logo depois, já enjoado, cuspir fora o seu negrume amaldiçoado e horripilante. E, como era natural, a manhã ressurgia no horizonte com força de esperança... Afinal, necessário existir folga no trabalho rotineiro. Necessário companhia humana sempre longínqua, sempre espinhosa. Daí que permanecer sozinho na folga fosse desfazer-me da máscara do falso horrendo vilipêndio. Da rasteira certeira, do ódio disfarçado em risos escancarados... E eu em minha inércia fatalista naqueles dias. Ereto, entanto. Mover-me só do quarto até a cozinha. Fazer um lanche, lanchar. Depois? Bem, depois nada. Talvez uma modorra depois do almoço. Uma rápida saída. Sempre aquela rápida saída. A praça desleixada, o lago dos sapos, das cobras e mosquitos. Ir ao campo de futebol, ver uma pelada dos marmanjos ruins de bola. Estavam, mas eram para jogarem peteca. Um desânimo para ir ao campo de futebol. Que fazer então naquela manhã fosca de primavera? Pensei na TV, mas um raio a decepou ao meio, ela, a minha companheira de quase todas as noites. Meu radinho, bem pequeno, inseparável nas madrugadas frias, quentes. Noites misteriosas, fantasmagóricas até. Umas músicas fora do nexo, outras que me arrepiavam os pelinhos da pele. Dormia ouvindo-as. E incrível era a vontade que me dava algumas noites querer me levantar e dançar; pular fingindo ser dança mesmo. Apoteose. Fantasia arquitetada por meus sentidos. Todos. A vizinhança, certo, reclamando logo da altitude e batuque do rock pauleira, e no outro dia, os resmungos das donas senhoras fofoqueiras "vejam só se pode?! Um homão daqueles... e não tem vergonha sequer!". Era assim mesmo, sabia, que as coisas funcionavam. Era o mecanismo, e não havia como fugir a ele. Mesmo disfarçados, camaleões, a vida se encarregava de desmascarar a falsa realidade dos gestos, dos corpos, das palavras. Era assim mesmo... Sabia sim... Mas era preciso continuar. Pular as pedras, os espinhos. Plantar rosas ao pé dos espinhos para ver se eles criavam vida nos seus talos ressequidos... Aquela manhã de primavera... As outras manhãs, que tédio... Papas envelhecia, Melquior também. Eles, tão escuros em si, tão cabisbaixos. Por isso nem mais conversava com eles, era inútil conversar com eles. Um desinteresse mútuo. Uma falta de assunto. Assim todas as manhãs de primavera, verão, outono, inverno... Assim todas as tardes e noites. Toda a vida... Vida que era ida apenas, porque a volta era quando acertássemos as contas com Deus, o Onipotente. E me dava medo isso. Um medo que tomava o corpo e a mente. A alma, então, medrava-se. Santo, eu? Nem um tico. Meus pensamentos, um turbilhão... Tudo por eles passava, como um magma escorrendo sobre um solo fértil. Meu cérebro templo da perdição. A hipocrisia nele... Era de meu cetro querer ensinar coisas que não vivia em vida mesma. Meus aprendizes não enxergavam por esse lado. Tinha-me por homem respeitável e digno de contemplação honrosa. A fastigiosa procura por mim mesmo desaparecido e ignorado. Santidade... Longe de eu poder alcançá-la, desfrutar dela com paz no espírito. Equilíbrio próprio. Não querer e querer ao mesmo tempo sair correndo e gritando pelas ruas, pedindo pelamordeus, cantando músicas feias de manifestação contra o repúdio dos pingüins brasileiros à massa que é também eu já desvalido e inevitavelmente contaminado pela rosa negra do opróbrio. Mas assim mesmo vou vivendo, anjo...

Daniel Oliveira
Enviado por Daniel Oliveira em 09/02/2008
Código do texto: T851736