Salvem a Velhinha!
- Tempo?
- 5 minutos.
- Cruza a praça central, contorna o boteco do Lontra, pega o acesso da ponte e segue em frente.
- Quantos são?
- Dois.
- Devo ligar?
- Tanto faz.
O grito da sirene nem incomodava mais Celso. Passara os últimos quinze anos resgatando corpos encharcados de cachaça dos metais retorcidos. “Esse cara é filho de alguém, porra!”. Tempo insuficiente para esquecer a frase chorada em sua primeira ocorrência. Sentiu o eco reverberar nas paredes de um estômago embrulhado por gasolina seca, esmagando seu escapulário até que o polegar desviasse o corte. Nada como um dia após o outro. Que conselhinho de merda, pensava ele.
Celso reconhecia no limite do seu trabalho a própria necessidade de enfraquecer a mente. Círculos embaçados criavam anéis insuportáveis sobre seus olhos. Muitos pagam por essa ilusão, ele as tinha por impulso natural. Mastigava pílulas coloridas com o café amargo da central, mordia qualquer canto crocante de pão e distribuía seu sorriso sonâmbulo para quem cruzasse seu uniforme. Boa noite, consciência, meu turno começou há dezoito segundos. Prometo buscá-la na dor, talvez amanhã.
- Tempo?
- 2 minutos. Já estamos quase lá, Capitão Celso.
- Eu sei. Conheço o caminho.
- Como o senhor...
- A mesma rua em que ele morreu.
- Ele não tinha chances, senhor.
- Todos temos chance, o que falta é sorte.
- Faz tanto tempo e...
- Esquerda, segue setenta metros e cruza a ciclovia. Pára na calçada.
- Ok, Capitão...
O freio desregulado da ambulância espantou a massa que se formava em frente à vila. Celso empurrou a porta branca olhando para o chão sujo. Desfibrilador, amoxicilina, diclofenaco sódico, benzilpenicilina benzatina, cloridrato de fluoxetina, tala e gaze, muita gaze. Mesmo que procurasse, nunca encontraria as manchas do jovem que socorrera em seu primeiro dia. Pensou em beber cândida pra lavar a alma, alvejar a tragédia que encenara, assim como escovaram as pedras que pisava agora. Talvez desse tempo, com sorte, double shot.
Celso caminhou em direção à casa seis. O casal de idosos fora visto a última vez pelo vizinho de porta, dono de um gato aleijado, através da minúscula janela da cozinha. O cheiro de gás engasgava as crianças de pijama que lutavam na rua para acompanhar o herói. “Quero ser bombeiro quando crescer!”, gritou um dos moleques, de peito estufado, com gesto de bandido. “Todos querem, mas ninguém suporta chorar a merda dos outros... eu não suporto...”, resmungou Celso sem que o marginalzinho ouvisse.
A madrugada era gelada e a fórmula simples. Quem sabe resgatar dois velhos rastejantes da intoxicação acidental do gás não equilibraria seu saldo de cagadas? A central precisava conhecer aquele herói, não haveria mais risinhos abafados em vestiários molhados ou escalas rabiscadas pelas costas. Acompanhar um lunático como o Celso? Nem fudendo, ninguém queria. De madrugada, então...
O cheiro de gás escapava veloz. Agarrado à maleta de primeiros socorros, sentia o ar denso queimar os vãos largos do seu nariz. T-butil mercaptan é a substância que encena o medo, tinha pra dar e vender. Prendeu o sopro, mas nunca foi preso, arquivaram o caso. Lembrou dos estalos do fogão elétrico da mãe, quando moleque, e sua lerdeza ao acionar a chama. Ironicamente, morreu cedo e bem rápido.
Ao estourar a porta, percebeu que o corpo do velho já não se movia sobre o tapete da sala. Hora mortis, pensou em anotar, mas não era seu trabalho, problema dos outros, estudaram mais pra isso. Mas sabia que precisava desligar o gás que apitava o ritmo, encontrar a velha descuidada, carregar pelo menos um sobrevivente em seus braços. Aplaudido pelas crianças risonhas, maridos de bermuda furada e curiosos de tragédias comuns, poderia sentir novamente sua casca heróica calcificar.
Ainda faltava um quarto, precisava estar lá. Invadiu a porta e percebeu uma senhora com os olhos entreabertos gemendo uma massa de cuspe cinza. Agarrou seu pescoço e preparou a máscara de oxigênio. Herói, Celso, herói! A boca trêmula da vítima buscava força, sílabas afogavam-se na seqüela frágil. Poupe o fôlego, haverá tempo para agradecimentos. Medalha, talvez, daria ordens. Esticou o sorriso suado e, antes que acionasse a válvula do oxigênio, ainda ouviu um suspiro:
- Ob....cof...
- Calma, senhora, está tudo bem.
- Obri... cof...cof...
- Melhor não se esforçar.
- ...obrigada... cof...
- Que é isso, esse é meu trabalho, senhora.
- Obrigada...por estragar... tudo... cof...
- Mas eu...
- ... seu grande... filho... da... puta...