Mistério completo
Quem passa nas ruas de paralelepípedos, colocados por mãos hábeis e
caprichosas, caminhando pelas calçadas estreitas e sentindo a magia dos velhos casarões que costumam exibir palmeiras grandes, antigas e muito altas, dentre outras árvores que embelezam casas onde é fácil notar que aquele local já foi rico e importante, não pode deixar de sentir a sensação misteriosa do lugar.
Não são apenas casas grandes, suntuosas, hoje apenas mostra do que foram no passado. Existem muitas outras, quase sempre em vilas ou lugares elevados, onde pode-se ver que o local já foi parte importante da cidade.
Quase todas as construções são de pedra ou alvenaria de primeira qualidade, onde o pó de pedra foi fartamente usado. Os telhados são todos da época em que o velho e muito atraente lugar foi desenvolvendo-se.
Tudo isto, e muito mais, causa esta sensação de mistério a quem apenas passeia a pé pelas ruas do velho bairro, hoje tomado por moradores que não devem ter nada em comum com os que construíram o local.
Saem de dentro das casas sons de instrumentos musicais, o que pode ser explicado facilmente. Muitos professores de música moram no lugar, e quando não são eles que estão tocando seus pianos, violões, saxofones e flautas, principalmente, são os alunos. Fácil distinguir quem está tocando, pois quase sempre os aprendizes ainda estão sem identidade com o instrumento, e quem paga isso são os ouvidos dos que passam pelas ruas.
Outras vezes, dá-se justamente o contrario; caminhantes fazem uma ligeira pausa para ouvir um velho maestro tocando, ou mesmo um artista que em bom momento resolveu morar ali. Durante a noite é difícil escutar um som que não encante os ouvidos, principalmente quando os músicos estão tocando em conjunto, o que transforma o local num teatro.
Não é privilégio de quem sabe tirar a fala de um instrumento morar nas casas antigas. Parece que é regra lugares assim chamarem artistas. Não são poucos os ateliês de pintura, principalmente.
O professor André Ribeiro da Costa, de família ilustre, juntou como diz o povo o útil ao agradável, pois o campus da Universidade Federal está localizado na parte do bairro que fica junto ao mar.
Matemático de talento indiscutível, além de professor no Instituto de Ciências Exatas, era um apaixonado pela pesquisa de uma das partes mais sensíveis daquela ciência. Muitas obras sobre o cálculo de probabilidades eram de sua autoria, e são inúmeros os trabalhos do catedrático sobre o assunto.
Conhecido por todos, morava perto da praça antiga, toda em pedra, com seus bancos sempre ocupados ou por estudantes da universidade, ou pelos moradores. Entendiam-se bem, os jovens alunos e os moradores.
A casa do professor André, durante a noite, ficava iluminada com uma intensa e forte luz branca, que se apagava sempre depois da meia-noite. Seu computador ajudava bastante nas pesquisas, pois possuía programas especiais, todos matemáticos. Mesmo assim, André jamais deixou de lado sua calculadora HP. Foi nela que desenvolveu muitos estudos.
Admirado pelos discípulos, compreensivo e atento ao desenvolvimento dos mesmos, havia assumido uma posição de verdadeiro mestre e conselheiro.
Percebeu que uma talentosa aluna, Rita, não estava progredindo como devia. Perguntou-lhe o motivo e a resposta foi cheia de evasivas, mas isto não impediu que visse uma tristeza nos olhos da bela moça.
André era conhecedor da alma humana, ou pelo menos tentava compreender seus mistérios mais ocultos. Nunca deixou que a ciência tomasse conta da sua vida, que era aleatória também, como a sua especialidade no cálculo não exato, mas bastante provável de acontecer.
O tempo, ele sabia bem disso, mostraria o que estava acontecendo com a jovem aluna. Fosse um tipo comum, ele não daria tanta importância. Mas Rita demonstrava uma inteligência desenvolvida. Foi a partir deste momento que começaram a surgir fatos muito estranhos na sua vida.
Embora toda a área em que morava não pudesse ser alterada, pois estava tombada pelo Patrimônio, ele modificou discretamente a casa onde morava, envidraçando uma grande e fresca varanda que existia nos fundos, dando para um quintal.
Um pássaro, que ele julgava ser um sabiá-laranjeira, começou a dar bicadas nos vidros, pela manhã. A princípio, ele não deu muita atenção ao fato, mas o sabiá, durante a tarde e ninguém sabe como, passou a bicar o vidro do seu quarto também. Parecia conhecer os hábitos do dono da casa, que costumava dormir um pouco, antes de iniciar seus trabalhos noturnos.
- Pois é exatamente o que estou lhe dizendo, Yuri. Este passarinho está fazendo uma confusão na minha cabeça. Parece que me está querendo dizer alguma coisa – desabafou a um colega e amigo.
- André, você é cheio de mistérios! No momento, está trabalhando no quê?
- Nada, Yuri. Estou ajudando uns colegas da universidade, que pesquisam células-tronco.
- Tem certeza disso? Não está fazendo nada de diferente, ou pensando em algum caso em especial?
- Não, Yuri. Estou é aprendendo este assunto novo, eu compreendo muito pouco e não quero me envolver nesse estudo. O que faço é analisar os resultados para os geneticistas.
- E aquele mendigo que você abrigou, durante tanto tempo?
- Voltou para a fazenda em São Paulo.
Esta era outra história misteriosa em que André se meteu. No velho e simpático bairro, havia um mendigo que não incomodava ninguém. Morava na praça durante o verão e debaixo da marquise onde estava a loja de artigos para artistas plásticos. O professor acomodou o mendigo num quarto nos fundos da sua casa, e notou que o homem tinha mudado de comportamento completamente. Tomava banho todos os dias, lavava sempre as roupas que André havia dado e não possuía mais o aspecto de mendigo, até que acabou confessando ser professor de Literatura, a quem a vida não lhe tinha sido nada fácil. Perdera mulher e filha num desastre estúpido, e assumiu uma estranha vida de abandonado no mundo.
Depois de algum tempo, voltou para São Paulo, onde tinha uma fazenda que se achava sendo administrada por sobrinhos. André nunca mais soube notícias dele, até saber que Marco Antonio, assim era o seu nome, estava aposentado como professor de Literatura e morando na fazenda. Leu a carta do seu protegido, se é que foi isto mesmo que aconteceu, e ficou exultante.
Como poderia saber, com um gesto tão humanitário de abrigar um mendigo, que o homem também era professor? Era mais um fato bastante estranho na vida do matemático que já passara dos cinqüenta anos de idade.
Procurou Rita, na saída de uma aula. Ela mantinha um olhar distante e triste. O que se abrigava dentro daquele coração, ninguém saberia dizer, só ela mesma. A moça permaneceu calada, mesmo quando ele perguntou a razão da sua falta de interesse nas aulas.
- A culpa é minha, Rita?
- De modo algum, professor. Acaso você não vê o progresso dos outros alunos?
- Sim, eles estão bem. Mas você é talentosa, Rita. Mostrou isto no ano passado.
- No ano passado, André, você conheceu outra Rita. Aquela já não existe mais, tento disfarçar, mas meu interior está mudado.
Percebendo que aquela conversa estava precipitada, André voltou para casa.
Tinha sido presenteado com uma excelente garrafa de vinho tinto, que gostava muito. Seus alunos eram atenciosos.
Enquanto tomava um cálice do tinto, o sabiá transmitia num estranho código Morse sua indecifrável mensagem. Este fato, agora, tinha-se transformado num hábito comum. O pássaro não sossegava mais.
“Este passarinho até parece que está querendo me dizer alguma coisa”, pensou. Jantou e dormiu com aquela idéia na cabeça.
Na manhã seguinte, para o seu espanto, foi acordado pela sua aluna que não estava correspondendo o esperado. Rita tocou a campainha da casa.
Com lágrimas nos olhos, pediu que não fosse abandonada.
- Mas o que você tem, Rita?
- Estou com os dias contados, professor.
- Dias contados? Anda estudando probabilidade demais, mocinha?
- Quem dera que fosse isso, André. Estou doente, e preciso de carinho para enfrentar o que estou passando.
- Mas está com belo aspecto, Rita. Você disse que está doente. Posso saber qual a doença?
- Você vai saber na hora certa.
- Mas que hora é esta?
- É fácil. Quando eu disser para você que quero viver! Não me abandone, André.
O professor, muito sério e respeitado, não entendeu o que a moça estava dizendo. Mas percebeu de imediato que não havia maldade nenhuma no que ela estava confessando.
- Vamos fazer um café, Rita. Estamos precisados.
- Eu faço com o maior prazer.
Não demorou, e toda a casa estava perfumada com o cheiro do café preparado por Rita, que esquentou o pó antes, um procedimento que poucos conhecem, hoje.
Tomaram o café juntos, havia queijo e pão integral, na geladeira.
- Rita, fale o que você tem comigo. Vão acabar pensando mal, você sabe como é esta gente.
- Você vai saber no momento certo, André. Mas por favor, não me abandone. Eu preciso de quem me proteja. E este alguém é você.
- Eu, Rita? Você tem pai e mãe. Por que eu?
- Porque você me encantou, André. Não fez força nenhuma para isto, mas as histórias que sei ao seu respeito me dizem com certeza que você é o meu Anjo da Guarda.
- Mas é o quê isto, menina?
- Vai saber, André. Tudo tem o seu tempo certo.
Tudo tem o seu tempo certo... Fato que a Vida e probabilidade podem explicar. Mas no caso de Rita, do que se tratava? Ela continuava sem dizer alguma coisa, mas pedia carinho. Fato estranho, mas não assombroso.
Num dia de aula, ela, que não faltava nunca, não estava ocupando a cadeira que era sua. André estranhou. Perguntando aos alunos, colegas e amigos de Rita, soube que ela tinha viajado. Procurava os pais.
Quando chegou a casa, encontrou um bilhete: “André, quero viver.”
Poucos dias depois, André sabia do seu falecimento. Ele não entendeu nada. Só que tinha sido alento para uma jovem que estava no fim da Vida.
E o passarinho continua bicando os vidros, onde quer que ele esteja.
Um completo mistério...