UM HOMEM MUITO DILIGENTE

Edmilson sempre foi muito diligente. Enquanto seus irmãos dormiam, na madrugada silenciosa da fazenda, ele pegava sua enxada e corria para a várzea do açude, na intenção de plantar mais algumas covas de batata. As galinhas-dágua nadavam apressadas com sua chegada, deixando suas trajetórias riscadas na água. Na colheita, desejava juntar mais algum dinheiro para iniciar sua mercearia na cidade.
A limpa do mato estava marcada para segunda-feira. O inverno naquele ano começara cedo e o roçado de milho e feijão estava uma beleza. O mato também crescera rápido. Seu pai já havia chamado alguns trabalhadores e formado um adjunto, para limpá-lo. O escuro da madrugada fugia depressa, com a aproximação dos primeiros raios de sol. Já se ouvia o tinido forte do martelo batendo enxadas no terreiro. Os passarinhos voavam amedrontados. Edmilson, sempre previdente, já amolara sua enxada antes. Partiram todos para o roçado. A produção naquele dia seria grande. Para atiçar ainda mais a “negrada”, eles combinaram que, lá na limpa, quem chegasse por último, teria sua carreira de mato urinada por todos que concluissem em sua frente. Ele era forte e não iria permitir tamanha desfeita. O suor escorria em seu rosto, enquanto puxava rapidamente grandes enxadadas de mato verde. No meio da carreira de mato, inadvertidamente, viu a cor rubro-negra e branca da cobra coral se mexendo em seus pés. Rapidamente, bateu com o olho da enxada nela, matando-a. Já aprendera que limpar de enxada, era puxar cobra para os pés. Perdeu alguns segundos para matá-la. Por isso chegou por ultimo no fim da linha. Viu os companheiros, com algazarra, urinando com desdém, em sua carreira. Aquela afronta era forte demais para suportar. Ele era homem valente e não levava desaforo prá casa. Murmurando, quase cego de raiva, ainda pôde vislumbrar uma pedra no serrote próximo. Correu prá lá, balbuciando palavras desconexas e bateu com força com a enxada na pedra. Saltaram faíscas de fogo. Gritou que nunca mais limparia de enxada. Jogou a enxada amassada com o cotoco de cabo, com força, no matagal do serrote. Um bando de anuns pretos levantou vôo. Todos ficaram em silencio. Só se ouvia ao longe um passarinho cantando: Bem-te-vi, Bem-te-vi.
Ainda cuspindo brabeza, voltou para casa, para onde foi obrigado a levar o desaforo. A cabroeira retomava o serviço. Seu pai, ao vê-lo, longe, na curva de mato, entendeu que algo estava errado. Ao se aproximar, perguntou:
- O que houve, meu filho?
- Perdi uma aposta e quebrei a enxada! Jurei que nunca mais 'pego' numa enxada, papai!
Seu pai ficou calado por alguns instantes. Respeitou sua decisão. Depois desabafou:
- Tem nada não, meu filho. Vamos terminar de engordar o garrote da vaca mimosa e vou vender para ajudar em sua mercearia. Sim, este era seu sonho. Abrir uma mercearia na cidade.

Aquela madrugada estava muito escura. Edmilson saltou da rede, ainda muito cedo, pegou o cabresto e se dirigiu para o cercado. Daria para enxergar o cavalo, àquela hora?. As madrugadas têm a mesma cor dos burros que fogem. Ele estava muito animado. Seria aquele o dia da inauguração de sua mercearia. Chegando à cidade, se dirigiu até o mercado e com os olhos brilhando, abriu a porta. Tudo já estava arrumado e limpo. As mercadorias estavam colocadas, afastadas umas das outras, nas prateleiras. O capital era pequeno e não dava para enchê-las. Os sacos de cereais ficavam abertos, com o milho e o feijão de corda, colhidos nos roçados de seu pai. Tudo à mostra do freguês. Naquele primeiro dia, ele patrocinara uma rodada de cachaça para os clientes que desejassem esquentar. Tratava a todos com muita alegria e motivação. Era um dom que trouxera e o desenvolvia com muita maestria.
Passado algum tempo, sua freguesia crescia. O comentário se espalhara na cidade. Era na mercearia de Edmilson, o melhor atendimento. Até as prateleiras estavam, agora, mais sortidas. Ele se desmanchava em sorrisos. Colocou para vender, até as massas da padaria de Petronilo. Todos acorriam para comprar os pães e biscoitos em sua mercearia. A padaria passou a fabricar quase toda produção para ele.
Depois que chegaram os pedidos de enxadas, foices e campinadeiras, não havia mais onde colocar. Teria mesmo que providenciar um depósito, ou outro local para sua mercearia.
Ele sempre voltava para a fazenda, dali a três quilômetros, montado em seu cavalo pintadinho. Já estava acostumado à cela macia e ao galope cadenciado. Sempre trazia presentes para sua mãe. Latas de biscoitos e cortes de tecido. No trajeto, as idéias também passeavam por sua cabeça. Alugaria um local para o depósito, ou escolheria outro ponto comercial maior, onde pudesse instalar também uma padaria? Deixaria assim, de comprar as massas a Petronilo. Depois de muito matutar, resolveu alugar um ponto, bem maior, no outro lado do mercado. Ali havia espaço para tudo.
Chegando à fazenda combinou seu plano estratégico com seus pais. Eles concordaram. Estavam vendo sua ascensão. Ele chamou o caseiro Chico Deusdério, para ir deixá-lo na estação, no dia seguinte. Iria de trem, até a cidade de Souza e de lá até Campina grande, de ônibus. Na madrugada seguinte, Chico Deusdério fez a tarefa de pegar e selar o cavalo.
Chico, animado, sabia que iria na garupa e voltaria, sozinho, no cavalo pintadinho.
O Trem chorava lentamente na curva, enquanto a fumaça formava um redemoinho negro e subia para pintar de preto, as nuvens lá em cima.
Edmilson comprou todos os equipamentos de sua padaria. Aproveitou e pesquisou os preços de várias mercadorias. Achou-os bem mais baratos. Comprou também várias ferragens para aumentar seu estoque. Adquiriu também um cofre, com chave e segredo. Os comerciantes, por onde ele passava, admiravam muito sua destreza e desenvoltura, bem como gostaram de suas compras, todas pagas à vista.
Agora era apressar a instalação das máquinas e construir um forno grande de alvenaria. Encomendar também na marcenaria de seu Chagas um balcão bonito, com locais para expor os produtos. Especulou, silenciosamente, no intuito de encontrar um bom padeiro. Soube que havia um tal de Dãozinho que era mestre de massas e o melhor da região. Contratou também o mecânico Chiquinho de Nelito, para acompanhar a instalação do motor, cilindro e do gerador. Afinal, tudo teria que funcionar acionado por motor à explosão, haja vista não haver, ainda, energia elétrica. Ou melhor, em breve haveria , em seu estabelecimento. Comprara também um gerador em Campina Grande.
A inauguração do seu novo negócio foi um sucesso. Teve que convidar mais algumas pessoas para ajudar no balcão. Também resolvera dar os pães a todos, como promoção de abertura de sua nova padaria. Por isso foi grande a aglomeração de pessoas, naquela tarde de sol. Dãozinho fizera vários pães doces de coco, que eram assados em formas grandes. O cheiro de pão assando se espalhara nas imediações. Além do convite entregue, de casa em casa na cidade, agora era o cheiro gostoso dos pães de Edmilson.
Como a produção de massas secas, na semana seguinte, fora bastante grande, ele pensou em contratar o caminhão de Miguel Silva, para tentar vendê-las, na cidade de Umarizal. Teria que levar tudo, segunda-feira, dia de feira, naquela cidade. O caminhão estacionou cedinho, ainda nem rompera a aurora. A estrela d’alva assistia tudo, admirada, enquanto era mandada embora, por um raio de sol que se projetava em sua direção.
Todos os ajudantes carregaram as massas, sob a orientação de Dãozinho. O caminhão dobrou a esquina, coberto com uma lona verde. Ao passarem pela cidade de Lucrecia, no caminho, ele aproveitou e desamarrou a lona. Tirou da carroceria uma arroba de bolachas e ali mesmo, enquanto tomavam um café com bolacha, já aproveitava para mostrar o sabor e a qualidade de seus produtos. Numa volta rápida pela rua daquele comércio, ele vendeu a metade da carga. Resolveu suspender as vendas, para poder continuar viagem. Em Umarizal usou a mesma estratégia. Antes do meio dia, já havia vendido quase tudo. Deixou apenas, uns poucos pacotes, para mostrar a mais alguns comerciantes. Ao retornar, já trouxera pedidos para a próxima feira.
Á tarde, cansado, voltou com o caminhão vazio e os bolsos cheios. Ao voltar, à noitinha, para a fazenda, seus pensamentos voavam rapidamente, pulando de estrela em estrela, em turbilhão. Se as vendas de Umarizal continuassem crescendo, poderia, talvez comprar o seu próprio caminhão. Assim não pagaria mais frete a Miguel Silva.
Entretanto, desejava ardentemente, construir sua casa. Já escolhera até o local. Seria naquela esquina, na rua adjacente à padaria. Afinal, seu namoro com Elione agora tomara ares de compromisso mais sério. Eles pensaram seriamente em casar.
Desde a tarde, os olhos de dona Amélia, sua mãe, não saiam do baldo do açude. A procura de Edmilson que não chegava. Sua alegria era imensa, ao ouvir o trote do cavalo. A festa era geral, quando ele subia a rampa do sangradouro do açude. E maior ainda, quando entregava mais uma lata de biscoitos. O café da manhã seguinte, não seria somente qualhada ou pão de milho, e sim, seria reforçado com biscoitos.
Suas tarefas agora aumentavam, consideravelmente. Iniciara a construção de sua casa. Diligente, como sempre fora, era o primeiro a chegar, ainda com escuro, nas obras da construção. Já preparava o arisco e cimento, misturava-os e deixava os andaimes prontos. Ao chegar o pedreiro, não havia mais tempo a perder.
As vendas da mercearia, agora com a padaria, cresceram a olhos vistos. Os outros comerciantes, olhavam de lado, talvez com inveja. Mas fazer o quê? Eles não tinham o talento de Edmilson. Na feira seguinte, Dãozinho preparou ainda mais biscoitos e bolachas. Edmilson fora obrigado a chamar mais um padeiro para trabalhar à noite e aumentar a produção. O caminhão de Miguel Silva, naquela segunda-feira, levou uma carrada bem maior. Na passagem por Lucrecia, vários compradores já esperavam. A mesma coisa, quando chegaram a Umarizal. Ele resolveu alugar um local, no centro, onde poderia armazenar e expor as mercadorias. Além das massas, também levara ferragens para vender aos agricultores. Enxadas, picaretas, até campinadeiras. Os produtos eram de excelente qualidade. Os preços eram bons. Tudo concorria para o negócio crescer. Antes da feira terminar, ele já vendera tudo, mais uma vez. Chegaram de volta, até mais cedo, naquele dia. Tomava logo conhecimento das boas noticias. As vendas no balcão também aumentavam.
Sua casa ficava muito bonita. Além de ser na esquina, colocou no projeto um muro que a rodeava desde a esquina até o final do quarteirão. Terminados os serviços de construção, marcaram a data do casamento.
Foi um dia inesquecível, ao permanecer ali no altar da matriz. Seu coração batia cada vez mais forte. Até vislumbrar, o cortejo, seguido por sua doce amada, sentiu uma emoção indescritível. A lua de mel fora sempre intercalada com um dia de trabalho e uma noite de quimeras de amor.

Ele pensou em trazer uma de suas irmãs, lá da fazenda, para ajudar no balcão. Iria combinar isso com sua mãe. Sua irmã poderia agora morar em sua casa e estudar na cidade.
Precisava viajar mais uma vez a Campina Grande. As mercadorias estavam acabando. Até pensou em pegar o trem logo no dia seguinte.
- Ah, não! Primeiro vou à fazenda, deixar alguma coisa prá mamãe. Aproveito e combino com ela, sobre o convite de minha irmã. Pensou baixinho.
Seus pais acharam a idéia excelente e trouxe Rita. Bonita e simpática, encaixou certinho na função.
Passados dois dias, ele pegou o trem na estação, indo pelos mesmos trilhos para as bandas da Paraíba. Na manhã seguinte, após fazer todas as compras, resolveu visitar uma loja de caminhões. Gostou muito daquele caminhão verde-claro.
- Se você dividir em duas parcelas eu levo o caminhão.
- Posso dividir, Seu Edmilson, apenas cobro os juros. Porque assim, sem entrada, o senhor sabe, não é?
- Sei, mas estou propondo pagar a metade agora e o restante em trinta dias. Se você fizer sem juros, levo o caminhão.
- Fechado.
Naquele dia, Edmilson não voltou de trem. Teve que contratar um motorista para levar o caminhão até sua cidade. Carregou suas mercadorias naquele caminhão novinho. Parou várias vezes, só para que seus olhos fotografassem aquela imagem inesquecível. Na viagem de volta, aproveitou para receber do motorista, alguns ensinamentos teóricos sobre seu oficio. Viajaram naquela noite de lua, porque a hora era fria. A lua corria lá em cima, olhando para o caminhão. E o caminhão, aqui em baixo, também corria. Em cada alto da estrada ele também projetava o olhar de seus faróis para aquela lua cândida. O seu pensamento também corria, rápido, igual ao caminhão.
- Quem vou contratar para dirigir este caminhão? Pensou baixinho. Acho que vou chamar Raimundo. Além de estar parado, é meu cunhado.
Na manhã seguinte, em pleno dia, ele estacionava aquele caminhão novo em frente ao seu comércio. Ao descer, as pessoas olhavam, sem acreditar no que viam. Após o almoço, ele foi deixar o motorista na estação, para voltar. Raimundo já ia todo orgulhoso na direção.
O seu negócio agora estava bem estruturado. Máquinas novas, bons padeiros, produtos excelentes e um caminho zerinho. Assim passou a trabalhar dobrado. O negócio se expandia e ele passou a visitar outras cidades, próximas à sua. Todos os meses viajava à Campina Grande, para comprar novas mercadorias a seus fornecedores. Aproveitava a viagem e na ida levava algodão comprado a seus clientes. Trazia as mercadorias mais variadas, tanto para o trabalho da agricultura, como para uso doméstico. Máquinas de costura, louças, porcelanas etc.
A demanda era grande. Um caminhão não dava mais. Teria que comprar outro logo. E por que não? Este seria um chevrolet 1963, do ano, zerinho.
Passados dois anos, sua irmã, casou e teve que sair. Ele sentiu muito sua saída. Contudo só havia uma alternativa, convidar logo, não uma, mais duas irmãs, para substituí-la . Assim, chamou Cacilda e Ivani. Além de muito responsáveis, Ivani tinha uma caligrafia uniforme e bem desenhada. Os livros da empresa, passaram a ser escritos daquela forma.
Três anos depois, a situação estava cada vez mais consolidada. Os negócios iam a todo vapor. Apenas sentia a ausência das meninas que também haviam casado. A alternativa, foi convidar Socorro, uma de suas irmãs mais novas. Além de ajudar na padaria, ela também estudava na cidade. No ano seguinte, Socorro fora convidada para assumir o trono de rainha da festa do município. Ela tinha uma beleza singular.
Nas festas do município, que duravam uma semana, ele fora convidado pelo padre para coordenar o trabalho de umas das barracas do padroeiro. Tinha que aceitar. Não poderia se negar a um convite do vigário.
À noite, foi à cidade de Martins, contratar junto a um amigo seu, Juiz da cidade, uma banda de música. Já no primeiro dia de festa, ainda de madrugada, a cidade acordava, sobressaltada, ouvindo aquele dobrado. A bruma escura dava lugar a manhã festiva que chegava. Todos saltaram de suas camas e saíram às portas. As ruas encheram de gente. A banda de música descia pelo alto da estação, com destino à barraca azul, tocando, ora dobrados cadenciados, ora músicas maviosas. Os preás atônitos, corriam em disparada, no baixio próximo. Ninguém jamais ouvira antes aqueles sons, naquelas paragens. Foram os tempos mais memoráveis que Almino Afonso, cidade do oeste potiguar presenciou, patrocinados por Edmilson, seu filho ilustre. Um homem muito diligente.
Edmilson recebeu convite para registrar sua candidatura a prefeito da cidade...

Mas esta é outra história...