Debaixo da cama

Abriu os olhos. Suas pálpebras estavam pesadas, ainda estava cansado e com sono. Porém, sentiu que não conseguiria mais dormir. O sol invadira o quarto quase que por completo. O relógio sobre a mesa de cabeceira acusava apenas dez para as cinco. Meu Deus, pensou. Ainda faltavam sete horas para o primeiro compromisso do dia. Após alguns momentos gastos - em vão - na tentativa de voltar ao mundo dos sonhos, Doug resolveu levantar-se.

Sempre esqueço de fechar a cortina, reclamou para si mesmo enquanto procurava seus chinelos. Tento em vista que a busca fracassou, foi ao banheiro. Ninguém precisa de chinelo. Olhou-se no espelho. Cabelo bonito, pensou ironicamente repercutindo num tímido e torto sorriso. Tentou ajeitá-lo com a mão. Após a segunda tentativa falha da manhã, reuniu forças para lavar o rosto. Voltou atenções para seus olhos - míopes, mas belos. De uma tonalidade encontrada em poucos lugares com exceção do Mediterrâneo, eles já haviam rendido numerosos elogios ao nórdico. Entretanto, não era a beleza ou a peculiaridade deles o foco desta vez. Havia algo de triste entre aquelas íris e pupilas. O que seria? Doug se intrigara com a própria análise. Não existia nada de errado com sua vida. Noves fora a usual bagunça e a nítida sensação de o caos ter se estabelecido na residência, possuía uma bela propriedade. Dinheiro, aliás, era um assunto com o qual ele podia se dar ao luxo de não se preocupar. Seu pai fora dono de uma rentável fábrica de móveis. Com o falecimento do patriarca da família, os dois irmãos mais velhos de Doug passaram a tomar conta do negócio. Ou seja, o jovem não apenas não precisava se preocupar com a alta no preço da nogueira ou a inadimplência de clientes como também tinha, asseguradamente, um bom retorno (do quê?) financeiro no final do mês. Não. Definitivamente não era o por todos almejado capital o problema.

Guiou-se à cozinha. As janelas deixavam transparecer todo o calor e a euforia que emanava duma cidade a poucos dias do solstício de verão. Doug não se importava. Precarou seu capuccino gelado e foi cortar um pedaço do chocotone fora de época. Observou a paisagem lá fora. O rio despertava majestoso. Os primeiros bondes da manhã já rodavam levando consigo alguns corajosos trabalhadores. Doug os observou admirado. Quem sabe não era aquilo de que ele precisava. Quem sabe uma vida com responsabilidades e horários não seja a solução para aquele vazio entre as íris e as pupilas.

Doug desistira. Pôs o capo na pia e voltou para o quarto. Olhou para o relógio: 5h30. Fechou as cortinas e deitou-se novamente. Após um tempo, já estava a dormir. Sem preocupações, sem ressentimentos. E sem se dar conta de que seus chinelos estavam o tempo todo debaixo da cama.

bbc
Enviado por bbc em 27/01/2008
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