Orelhas e Unhas II
17.04.2018
24.04.2025
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Foram passar um final de semana na fazenda de um colega da escola no interior do estado, ele e outro amigo do colégio. O local, era de propriedade da tia-avó, figura proeminente e importante na sociedade - Uma Condessa!
Seu amigo, o sobrinho-neto da Condessa, tinha um Ford Corcel branco 1971, do ano e todo equipado, "carro de boy", como se falava na época, com rodas de magnésio "tala larga", direção esportiva e o painel cheio de reloginhos que marcavam não se sabia o quê. Foram nele os três . Saíram da capital após o almoço e chegaram ao final da tarde de uma sexta-feira de verão.
A entrada da fazenda era majestosa, imponente e bonita. A estrada de acesso era larga e de chão batido, ladeada por colunas de eucaliptos altos que balançavam suas folhas ao sabor do vento, farfalhando-as com seu som e cheiro característicos. Sensação agradável e relaxante.
Passaram pela casa do administrador: uma mansão. E, seguiram para a sede da fazenda, belíssima - ali, ficara hospedada a Rainha da Inglaterra quando em visita ao Brasil.
Tratava-se de um imponente chalé em estilo normando, com telhados altos e inclinados, totalmente estruturado sobre pesadas vigas e pilares de madeira de lei entalhada, elevada cerca de dois metros acima do solo para abrigar o porão. Em toda a volta, tinha uma hera, trepadeira, bem aparada e multicolorida cobrindo as paredes de tijolos maciços. A entrada se fazia por escadarias largas que davam acesso a uma enorme varanda e ao portal principal, alto e esguio, também em madeira detalhadamente trabalhada. Um enorme lago ficava a frente da casa, com uma bela piscina e fonte em mármore de Carrara aos fundos. E, era um haras, com seus pastos divididos com cercas brancas, nos quais pastavam lindos cavalos de raça pura, que ao longe, observavam a chegada das visitas. Ele e o amigo ficaram maravilhados com o que viam.
Desceram do carro alegres, falantes e brincalhões como devem ser os jovens de 17,18 anos . Então, ao pé da escada, os aguardava uma senhora, que mais parecia uma estátua, pois tinha olhos de coruja, enormes e fixos, pele branquíssima, cabelos negros esticados para trás em coque e usando um vestido largo até os tornozelos, com um par de "Vulcabrás" pretos e meias soquetes brancas : a Governanta da casa, deduziu - sem graça como a função requer, mas enérgica - "Vai ser um saco aqui, com essa mulher pegando no nosso pé " - pensou.
Dito e feito. Ela os chamou para a grande varanda na entrada da casa, que continha móveis de junco fofamente estofados, dando aos visitantes vontade de pular neles, e começou a falar em voz baixa e firme:
- Aqui temos algumas regras e normas básicas de conduta e convivência que devem ser respeitadas - E, começou a enumerá-las : era proibido caçar, pescar e andar a cavalo; cumprir religiosamente os horários das refeições, porque a cozinha fechava e poderiam ficar sem alimentação; atentar ao badalar do sino, que tocaria por três vezes: três badaladas, 15 minutos antes do horário da refeição; duas badaladas, dez minutos antes e uma badalada longa ao ser servida.
O sobrinho-neto subiu as escadas para os dormitórios a frente deles, resmungando ser ela um "saco", uma cópia fiel da tia-avó, pois fora treinada por ela - trabalhava na fazenda desde menina. Enfim, era a boca, os olhos e os ouvidos da Condessa.
Instalaram-se os três em um quarto gigantesco, tomaram banho, vestiram-se e desceram para o jantar, pois já tocara a segunda badalada do sino.
No pé da escada, junto à entrada do salão das refeições, aguardava-os imponente a "Coruja Inspetora Chefe" , como a apelidaram. Com o seu olhar penetrante e duro, parou-os, inclusive ao sobrinho-neto, pedindo-lhes que mostrassem para vistoria: unhas, orelhas, narizes, roupas, as camisas dentro das calças , sapatos e cabelos. Fez uma verdadeira inspeção nos meninos, como os chamava, liberando-os, ou melhor, libertando-os para entrarem no salão. "Seria assim em todas as refeições?", refletiu .
Entraram no salão e ficou maravilhado com a imponência e pompa do local. Era comprido e largo, com pé direito alto, portando lustres de cristal pendentes e mesa para muitas pessoas - avaliou que mais de cinquenta caberiam ali sentadas. A cadeira da Condessa, com espaldar alto, ficava na cabeceira oposta à entrada, dominando todo o ambiente. Um trono!
Atrás dela, a entrada e saída da copa, tendo como anteparo, um lindo biombo chinês, ladeado por dois garçons, um de cada lado, impecavelmente vestidos e com luvas brancas, parados como duas estátuas. "Devem também ser vistoriados pela Inspetora Chefe , pensou. Do lado oposto ao trono, sobre o portal de entrada do salão, havia um lindo quadro de Cândido Portinari, retratando um filhote de cervo em floresta colorida e limpa, característica da sua pintura. Magnifico!
Esperaram em pé a chegada da senhora , que veio com andar claudicante, bengala, sorrindo para todos, sentando-se em seu lugar principal. Era simpática, mas enérgica e firme. Chamou o sobrinho-neto, dando-lhe um beijo carinhoso, pedindo-lhe que se sentasse ao seu lado direito, pois naquela noite não haveria mulheres à mesa. O costume era que, durante as refeições, os homens sentassem à direita da condessa em ordem decrescente de idade, e à esquerda, na mesma ordem, as mulheres - regra também já ditada na chegada pela "Coruja".
Por ser alguns dias mais velho que o outro amigo, sentou-se do lado esquerdo, próximo à condessa, e o amigo, ao lado do sobrinho-neto, à direita. Eram os quatro, somente naquela noite.
Iniciou-se o jantar. Na mesa, haviam copos de cristal de diversos tamanhos, vários pratos em louça fina e inúmeros talheres de prata: tudo identificado com as iniciais do nome da Condessa em monogramas dourados. "Seria um banquete", alegrando-se. E foi.
Um dos garçons chegou pelo seu lado esquerdo, servindo à francesa, abaixou-se e falou em tom baixo e educado junto ao seu ouvido:
- O que o senhor gostaria de beber?
Surpreso, demorou a responder, mas sem perder a postura, falou:
- O que tem ?
O garçom começou a desfilar uma interminável lista: água, suco disso e daquilo, este e aquele refrigerante, cerveja, vinho... Ao final, esperou a resposta parado ali ao seu lado. Perdido na quantidade de opções apresentadas e envergonhado, não ousou pedir que repetisse a enorme lista, falou:
- Água tá bom!
Seguiu o lauto jantar, com a Condessa muito simpática e participativa da conversa, perguntando aos novos hóspedes seus nomes completos, o que faziam seus pais, etc. Somente ela conduzia a conversa - outra norma da casa.
Terminada a refeição, foram servidos os licores e o café, na maravilhosa varanda da casa, tudo com muita pompa e circunstância. Sentiram-se como reis.
No dia seguinte, depois da vistoria da "Coruja" e do café da manhã nobilíssimo, foram com o sobrinho-neto conhecer a fazenda. Era ele pessoa bem simples e tranquila, sem nenhuma afetação, pelo contrário, desbocado, brincando com todos da propriedade usando um palavreado nada nobre. Os amigos o conheciam muito bem da escola, mas que não soubessem dessa sua faceta a tia e a Inspetora Chefe!
Voltaram quase na hora do almoço, passando pela piscina. Resolveram ele e o amigo dar um mergulho, pois estava um forte calor . O sobrinho-neto disse-lhes que estava quase na hora do almoço e não iria nadar, pois não queria criar problemas. Pediu -lhes para que não atrasassem e foi para a sede. Os dois amigos ficaram se refrescando na piscina.
Então bléim, bléim, bléim, tocaram as três badaladas do sino de quinze minutos para servir o almoço. "Temos ainda um tempinho, vamos dar mais um mergulho", disse ao amigo e mergulharam novamente na água refrescante e fria. O tempo correu e bléim, bléim, dez minutos!
Saíram e subiram em disparada a escada para o quarto, banho a jato, troca de roupa desesperada e bléeeeiiiim... a derradeira e longa badalada soou. Almoço servido. Desceram os dois afoitos e ainda molhados, camisas fora das calças, cabelos despenteados e lá estava ela: a Inspetora Chefe aguardando-os.
-Estamos fritos! - disse ao amigo. Mas ela, ao invés de fazer a vistoria habitual, ajudou-os a se recompor. Não acreditaram.
-Vamos, vamos rápido meninos! - disse-lhes, ajeitando a camisa de um, o cabelo de outro e pronto, estavam liberados. Afinal, a "Coruja" não era tão ruim assim.
Seguiram em direção ao salão de onde se ouvia muita animação e alegria, com conversas e risadas altas. O amigo esperou um pouco, deixando-o entrar primeiro e sozinho na sala de refeições. Pronto. Levariam a bronca ! Todos se voltaram para os atrasados - a família do sobrinho-neto tinha chegado: pai, mãe e irmã que sorriam para eles. Ficaram estáticos ele e o amigo, mais atrás, quando escutaram a Condessa lhes perguntar de forma carinhosa:
- "Chi è il più vecchio?"
O amigo, um passo atrás, rapidamente respondeu:
-Ele! - apontando-o.
A Condessa olhou-o e falou, carinhosa e um pouco jocosa:
- "Viene qui, bel ragazzo, senta qui dalla mio lado de castigo, viene, viene" - disse em seu ítalo-português.
Ficou desconcertado e sem graça. Vendo-o assim, todos riram com força, descontraindo-o. Sentou-se ao lado da Condessa de castigo. Ao amigo, a condessa disse que amanhã seria ele a sentar-se ao seu lado, de castigo também. A risada foi geral.
Ficaram mais próximos da Senhora Condessa. Ela, após esse fato, tornou as formalidades mais amenas, assim como a Inspetora Chefe, que mudou de postura, fazendo a vistoria de forma mais branda.
Parece que foram aceitos pela corte no final de semana real. Sentiram-se como nobres.