Olhos, boca e próstata

“Olhos, boca e próstata”

Nova manhã renova meu dia. O sol nem nasceu e sento-me no vaso para ler o jornal local: “O Popular”. Algumas manchetes sobre os presidentes sul-americanos, a maioria medíocres, assim como o nosso. Mas existem piores. Uma merda sai e outra fica no periódico. Troco pela “Folha de São Paulo”. Mais informativa. E de letras maiores. Aliás, apesar do comprimento da Folha ser dois centímetros menor do que “O Popular”, seus caracteres são todos do mesmo tamanho. Facilita. E a extensão dos meus braços já não se adapta mais as miudezas de algumas notícias. Preciso ir ao oculista.

Levanto-me para escovar os dentes e vejo essa cara de barba branca e sobrancelhas desarrumadas. Nada mal, para quem não dormiu de ontem para hoje. Porém ao passar a língua em cima e em baixo da arcada, encontro-me novamente com as duas falhas que quase vão aniversariar. Quando escalei o Kilimanjaro em janeiro de 2006, quebrei dois dentes, em dois dias seguidos. Talvez para aprender. Um aviso. Preciso ir ao dentista.

Após meu secular desjejum com ovo quente, manteiga de amendoim, vitamina de banana com Neston e mel, além do trivial café Brasileiro solúvel –sem açúcar, diga-se de passagem- com leite de saquinho e um pão francês, volto ao banheiro para urinar. Não sei se foi só impressão, mas o jato não me pareceu tão potente como ontem. Lembrei-me do meu pai que fez duas cirurgias, uma de adenoma e outra de câncer na próstata. Preciso ir ao ginecologista. Ops, ginecologista não; ao urologista, força do hábito...

Estamos na semana oca entre o Natal e o Ano Novo. Quando não se viaja, aproveito para colocar algumas coisinhas em ordem. Papeladas, contas, armário, visitar alguns amigos, telefonemas breves, contatos, revisão do carro e moto, e-mails na caixa de entrada, em vez da lixeira. Mas desta vez resolvi cuidar do meu melhor patrimônio, minha saúde. Marcar consulta não é problema, já que sou médico. Aliás, uma das poucas vantagens de ter essa profissão é que pelo menos nós mesmos sabemos quem são os melhores da área. Pois muitos são famosos, outros professores eméritos, raros são só pesquisadores... Mas bons de verdade; atenciosos, humanos, habilidosos e estudiosos, podemos pinçar em um grupo de meia dúzia, em cada especialidade.

Marquei primeiro o oculista. Na realidade oftalmologista. Foi meu colega e amigo de infância. Divorciou-se recentemente. Está meio chateado. Meu filho, que me acompanhou a esta consulta, foi obrigado a ouvir algumas imprecações contra a ex. Nada muito grave ou agressivo. Mas triste. Uma separação é sempre algo pesado. Ah, consulta médica sem acompanhante é quase como ir tomar cerveja sexta à tarde sozinho. Um tédio. É preciso de alguém ao lado para reclamar, para jogar conversa fora e principalmente, falar mal dos outros. Da saúde dos outros. Da vida dos outros.

Dilatar a pupila é uma tolice. Aqueles testes de ver os números e letrinhas, pior ainda. Agora, apertar o olho para ver a pressão do mesmo, é o fim! E a assistente? Mais impessoal, somente a secretária do Hitler. Vou pra lá, saio pra cá, sento aqui, sento acolá. Por que será que não colocam todos os aparelhos e testículos –desculpem-me, ainda não cheguei lá- e testinhos na mesmíssima sala?

A moto não dá partida direito. Só faltava essa. Depois do engasgo, lembro-me que faltam apenas quinze minutos para o dentista. Aliás, a dentista. Esqueci de citar que o espaço entre a base dos meus dentes e a gengiva, tem aumentado. E além disso, amarelado. Visivelmente. Não fumo, não como porcarias, escovo relativamente dentro da técnica. Por que então que toda vez que miro minha cara essa faixa esmaecida está crescendo? Escolhi uma periodontista. Delicada, mãozinha leve, mas segura e sem auxiliar. Importantíssimo. Ela mesma raspa as minhas entranhas interdentárias. Sai um negócio branco. Tártaro.

Levei minha filha. Um revezamento familiar é de bom tom. Porém minha carteira está vencida e lá vou eu renová-la. Não sei onde enfiei a nova. Também não sei o porquê da renovação, já que como médico cooperado, automaticamente me é descontado este serviço. Vou à Uniodonto. O cara que me atende é legal. Gosta da moto, brinca com minha garota. Só faltou oferecer chiclete, mas acho que não combina com o local. Vocês não sabem como é importante esse negócio de ser bem recebido em um ambiente médico. Você já está abalado, vai ser examinado e ainda tem aquela infinita burocracia. Quase morro de ódio quando a coisa não anda. Raramente digo que sou médico. É preciso ser igual, para ver se o tratamento é o mesmo.

Retorno. Contabilizo os exames. Radiografia periapical e também a panorâmica. Tenho uma idéia sombria do que se trata. Os óculos podem ser feitos onde eu quiser, mas ele sugere uma ótica lá no centro. Já repararam o tanto de ótica e farmácia que esta cidade tem? Só perde em números de motéis. E olha que eu ainda não falei absolutamente nada da próstata. Essa ficou por último. Existe certo receio anal. Natural. Mas há.

Mudando de assunto, passei a manhã toda cuidando de mim mesmo. Por que então tenho a legítima impressão que nada fiz? Se tivesse ido pedalar, irei treinar novamente para uma grande viagem, ou escrito algo bem bacana... Ou ido ao Zoológico – que adoro- ou uma longa estadia nos sebos da rua quatro, tudo estaria preenchido e bom. Mas só sinto o vazio. Bem, deixe de enrolação e conta logo a consulta ao urologista.

Marquei com meu grande amigo e colega de turma. O Mumú. Obviamente que não levei ninguém. Urologista é íntimo. Não dá para ir acompanhado. Liguei para ele, e o mesmo estava operando. Cheguei cedo. Sem almoço. Sabia que o sujeito é ocupadíssimo. Mas como todo médico de categoria, dá sempre a impressão de que você é o único que ele irá atender esse dia.

- Olá Tista!

- Oi, Dr. Murilo. Bom dia amigão!

- Gente, sabia que esse cara fez os partos da minha irmã e das minhas primas?

Disse olhando para os demais pacientes em volta e toda a bancada de secretárias e atendentes. Fiquei lisonjeado pelo carinho e atenção. Foi me buscar na porta. E antes de me abraçar efusivamente, cumprimentou os demais pacientes, um-a-um, chamando-os pelo nome e dando uma palavra de conforto e intimidade. Ah, eu amo o meu urologista!

- E aí Tistão? Bonitão como sempre, né? Gostei dos óculos escuros. Tira aí para a mulherada ver o verdão dos seus olhos...

- Tá difícil, amigão, dilatei a pupila.

- E de moto? Você não emenda...

- E esse hálito? Escovou os dentes para me ver?

Disse rindo e me conduzindo até sua sala. Abriu a porta para mim.

- Não é bem isso, estava no dentista.

- Ah, então tirou o dia para cuidar da saúde. Faz bem. Ainda está nadando?

- Sempre.

Comentou sobre a minha gravata de ursos panda, falou da turma, da vida, dos seus problemas. E foi perguntando-me tudo sobre mim. A maioria das coisas já sabia. Das fraturas, das cirurgias, da recente nucleoplastia na coluna, das minhas aventuras. Explicou detalhadamente sobre a importância do exame físico combinado com a USG e o resultado do PSA, um marcador. Utilizou uma linguagem acessível a qualquer um, apesar de eu ser médico. Fiquei fã. Então veio a hora.

- Tista, só precisa abaixar a calça e deitar-se.

- Obediente e relaxado, o fiz.

- É de frente, posição ginecológica.

Introduziu o dedo indicador bem untado de KY gel. Senti uma espécie de vácuo. Nada de dor. Apenas um desconforto. Palpou a próstata e as vesículas seminais. E antes que eu fizesse qualquer comentário, ou gracinha que o valha sentenciou.

- Sua próstata é de menino.

- Obrigado, amigão.

Repetiu a necessidade de três dias de abstinência para a coleta do PSA, além de não pedalar. Abraçou-me demoradamente e eu, apesar de querer ficar só para bater papo, fui-me. Feliz e tranqüilo. Quanta bobagem se fala acerca de um procedimento tão simples. Realmente as mulheres estão anos-luz à nossa frente em relação a consultas periódicas e exames constrangedores. Mas uma coisa eu concordo. Quando se é bem atendido como fui, não dá para não apaixonar pelo médico, ou médica. O Dr. Murilo é o máximo!

Bem, agora só falta fazer os óculos, tirar as radiografias, o USG e colher o sangue. Fácil. Moleza. Mamão com mel. Só não sei que dia que vou fazer. Mas irei. Certeza. Agora é questão de honra. Geralmente muitas pessoas param no meio das investigações e tratamentos médicos. Eu não, vou até o fim. Aproveitando que a minha esposa irá viajar com as crianças. Assim fica eliminado o tempo que passo com eles no horário do almoço. Aproveito para trabalhar mais e nadar mais, também. E um cineminha no último horário, pois ninguém vai esperar. Exceto a Úrsula, minha cachorrinha. Mas ela já é outra história...

Óculos e lentes são coisas diferentes, pois existe um troço chamado armação. Para um neófito como eu, qualquer uma serviria. Mas vejo-me em frente ao espelho experimentando um sem número de modelos. Existe aro completo, apenas em cima, várias cores, metal, fixações em chapa. Mil coisas numa coisinha banal que é um óculos. Escolho um formato pequeno, meu rosto é fino. E sem armação, apenas uma pequena ponte entre as lentes e hastes discretas.

- Vai ficar legal Johnny. Valoriza os olhos.

- Obrigado Mário Fabrício.

- Só uma coisa. Óculos é para ficar no rosto ou na caixinha. Qualquer outro lugar, ele não serve. Entendeu? Perde rapidinho ou quebra.

Achei de uma profundidade imensa o que acabei de ouvir. Podemos comparar os óculos com um sorriso, ou até uma paixão. Fica estampado ou guardado para a ocasião adequada. Gostei. Fabrício sempre foi um cara inteligente e de bom-gosto.

Satisfeito com os meus progressos, acordo cedo para as radiografias. Marquei a minha cirurgia para mais tarde. Além do que, no domingo pedalei pela primeira vez em anos e saí-me muito bem. Estas férias estão ótimas! Tudo transcorrendo como um sonho.

- Preciso fazer umas radiografias. Periapical e panorâmica.

- Para quando? Só tem horário o ano que vem.

- Para agora.

- Agora está vazio, acabou de abrir, se o senhor vier já, fazemos tudo.

- Pode deixar, em seis minutos estou aí. Onde é mesmo?

- Onde o senhor está?

- Na R-11, perto do Zôo.

- Vem pela 83, uma rua antes da Praça do Cruzeiro, vire à direita, na rua do consultório da doutora, logo depois fica a clínica. Mas se chegar a menos de 10 minutos eu te dou um presente. Se o senhor for bonito como a sua voz, dou um beijo.

- Pode deixar. Você não vai se decepcionar -fiz uma pequena pausa- quanto à pontualidade, lógico...

Saí tranqüilo, na moto. Sem trânsito, sem nada. Essas pequenas brincadeiras, por telefone, entre praticamente estranhos, me apetecem. Gosto de desafios, e de rir. Vou chegar a cinco minutos e trinta segundos. Apertei o cronômetro só de sacanagem. O beijo eu vou recusar. Mas a cara dela vai ser impagável.

- Olá, bom dia!

- Mas o senhor...

- Exatamente, o do telefone.

- Eu percebi, sua voz é inconfundível.

- Acontece.

Sorrindo e ao mesmo tempo olhando o relógio da parede e o seu próprio, ela delicadamente disse que eu seria o próximo. Conferiu o pedido, explicou que o convênio pagava tudo, mas que eu teria que ir a Uniodonto, para autorizar. Não entendi direito, mas contente com minha precisão de deslocamento e a possibilidade de livrar-me de mais um suplício examinatório, perguntei-lhe:

- Onde é?

- Na rua T-28 paralela a Avenida Portugal. De lado do colégio...

- Eu sei onde é. É no mesmo local que renova a carteirinha, né?

- Isso mesmo. Rápido como o senhor é, eu seguro a sua vaga.

- Dentro de quinze minutos estou de volta.

- É o tempo das meninas arrumarem tudo. Mas dessa vez eu duvido.

- Quer apostar outra coisa?

- Mas eu já estou devendo e ainda nem paguei...

- Não precisa pagar. Só promete que quando alguém chegar com pressa você vai atender com toda leveza e elegância. Só isso.

- Prometo.

Retornei em tempo hábil, claro. São dezoito radiografias. As da frente ferem o palato e a língua não sabe pra onde vai. Fiz cirurgia de fenda total. Meu palato é atrésico, fechado. Nas radiografias de trás, dá uma vontade imensa de botar tudo pra fora. Ainda mais o meu café maravilhoso que está meio que superficial. Já a panorâmica, o aparelho roda em frente ao seu rosto e tira um fino inimaginável do mesmo. Não sei se permaneço de olho fechado ou abro. Tenho dúvidas do que é pior, ver ou não ver a tortura chinesa, rica em detalhes e nuances bucais.

- Aguarde um momento, lá fora.

- Ué, não acabou?

- Se alguma ficou errada, tem que repetir.

Quase não acreditei no que ouvi. Tornar a me submeter a esse exame desgraçado, seria o fim. Agora a sala de espera estava lotada. Todo mundo parece que chega sempre na mesma hora, para fazer exames e outras necessidades ruins. Passei uma vista d’olhos nos rostos. Todos com aquela cara de descrença e abnegação diante do inevitável.

- Ficaram faltando cinco.

- Das de cortar ou das de vomitar?

- Como?

- Nada não.

Não pude deixar de perceber um risinho contido e cúmplice entre a maioria dos pacientes. Fiz e esperei pacientemente a nova resposta. Felizmente os que restaram eram simples e sem sofrimento. Dou sorte até em exame...

- Agora pode ir.

- Muito obrigado. Mas eu não levo os exames?

- Pode deixar que nós entregamos para a doutora.

Fui saindo e lembrei-me que para fazer a USG teria que encher a bexiga. Aproveitei que o enjôo passou e bebi dois copos d’água. Comecei assoviar um sambinha do Paulinho da Viola.

- Ah, senhor JB Alencastro?

- Sim?

- O senhor é bonito também.

- Obrigado, e você, muito gentil.

- Um beijão, doutor.

- Outro, até.

Esses elogios assim, espontâneos, fazem um bem enorme. Nada dessas cantadas vulgares que ouvimos diariamente. Apenas uma palavra amiga. Uma delicadeza. A moça trabalha legal. E tem a melhor qualidade que um funcionário pode ter: o bom humor.

Já com uma leve sensação de plenitude vesical, cheguei à clínica de ultrassonografia. Aqui as pessoas estão com pressa. Bebi mais dois copos d’água. Depois de responder as questões típicas de endereço e identificação pessoal, perguntaram se a minha bexiga estava cheia. Respondi que sim.

Existe uma ordem de chegada e também de exames. Nem todo mundo que chega primeiro será atendido na frente, pois cada procedimento tem um profissional diferente e um aparelho idem. Uma senhora que não pára de andar entre as cadeiras e bebendo goles e mais goles do garrafão Indaiá, pergunta a cada exatos três minutos se não é a vez dela.

Sou chamado. Ela se levanta empertigada e dispara:

- Mas eu nem vi ele tomando água, como é que vai à minha frente?

- Minha senhora, eu já venho ingerindo antes, desde cedo. Mas pode ir primeiro, se está tão apertada...

- Muito obrigada, ainda existem cavalheiros.

Aproveitei para terminar de ler pela última vez o jornal sem meu novo brinquedo. O desenho que passa na TV também é muito bom. Adoro desenhos animados. Um menino que vira dragão. Chique.

Novamente ouço meu nome e dirijo-me a sala de exames. A luz é abaixada, deitam-me educadamente e pedem para eu abaixar as calças até a altura da pube. Fico meio sem graça pois estou sem a roupa íntima. Como eu nado, a maioria das vezes uso a sunga, ou nada.

Entra um amigo de infância. Ele me chama de Batman. Nos nossos jogos, ele era o Pingüim. Meu irmão, o Robin. Já se passaram mais de trinta e cinco anos. Somos do mítico ano de 63. Sou mais velho, de julho. Ele é de setembro. Meticuloso, como todo bom virginiano. Meu celular toca e ele o busca para eu atender, recuso-me. Que coisa mais desagradável é um troço desses tocar em uma consulta médica. Pior que isso só no cinema ou – essa é mortal- na hora do amor. Haja próstata!

- Haja próstata!

- O que foi?

- Só quinze gramas, glândula de menino.

Bom, como hoje é quarta, e no domingo eu pedalei, dá para colher o PSA. Mas como ela só chega na segunda, vou aproveitar a quinta para treinar de novo. Colho o exame na segunda pela manhã. Beleza. Treinado, examinado e saciado.

Colher sangue é uma coisa meio chata. Fura e puxa o êmbolo. Maioria das pessoas acha que todo exame é em jejum. Marcadores não precisam disso. Quem tem Ca de próstata o PSA vai estar elevado de manhã, de tarde e de noite. Não importa o que comeu ou quem comeu. Mas esse negócio de abstinência é fogo. Como se impedir que sonhe? Aí fica difícil.

Já é tarde da noite e estou sentado no trono lendo o meu jornal favorito. De pertinho. As crianças chegam em algazarra, mas as atenções são voltadas para a cachorrinha. O cachorrão aqui permanece sentado. Minha dileta esposa entra no banheiro e levanto-me tentando parecer natural. Abaixo o jornal e sorrio para ela:

- Oi, amor. Como foi de viagem?

- Fui muitíssimo bem.

- Olha só, novidades! De óculos?

- É só para ler...

- E esses dentes branquinhos? Que lindo! Que hálito bom!

- Fui na periodontista...

- Nossa! Quanta mudança! Mais alguma coisa nova?

- Tem sim.

- E o que é?

Levantei o jornal e disse, abraçando-a:

- A próstata, a próstata é de menino...

JB Alencastro

JB Alencastro
Enviado por JB Alencastro em 24/01/2008
Código do texto: T831671
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