Um amor americano

UM AMOR AMERICANO

Tudo parecia muito normal, naquela manhã ensolarada em minha cidade, aliás, como sempre! Nasci e me criei na cidade de Natal, no Rio Grande do Norte. Cidade tranqüila, com muito calor, praias lindas e mornas.

Natal é única a começar pela sua fundação. A primeira versão, para a origem e nome da cidade, diz que a 25 de dezembro de 1597, a esquadra de Mascarenhas Homem adentrou à barra do Rio Potengi. A segunda fala da celebração de uma missa na noite de Natal de 1599. A versão aceita. Somente a partir dos anos 20, Natal começou a se desenvolver de maneira mais rápida.

Durante a Segunda Guerra, as Força Aliadas aqui se instalaram. Em seus aviões, partiam para Dakar, na África, com destino ao conflito na Europa.

O ano era 1942, a segunda guerra mundial assolava o mundo, trazendo fome e miséria. Hitler continuava sua invasão sem escrúpulos, fazendo milhares de seres humanos de cobaias. Países, até então pacíficos, como a Áustria, Holanda e Bélgica, eram obrigados a reforçar sua artilharia. Países com forças bélicas famosas como a Rússia, entraram na guerra contra a Alemanha, mas até aquele momento, sem muito sucesso de vitória.

No Brasil, muitas mulheres continuavam indo ao porto se despedir de seus maridos, na época, transformados em “pracinhas”, símbolos vivos de um patriotismo sem precedentes.

Era enfermeira no hospital de base da cidade de Natal/RN, e tinha minhas “fontes” de como andavam realmente, a guerra na Europa. Cada vez que chegava em casa, meu pai e minhas irmãs corriam pra cima de mim, na esperança de mais notícias, talvez mais verdadeiras ditas por mim, que as ouvidas na “Hora do Brasil”.

Minha família era pequena : meu pai, Sr. Manoel, era gerente de uma loja de sapatos no centro de Parnamirim. Minha mãe morrera quando tinha apenas 14 anos, o que nos uniu mais ainda. Minhas três irmãs, entrando agora, na adolescência. A única que trabalhava era eu, formada recentemente em Enfermagem. Aliás, trabalhava no hospital de base de Natal.

Trabalhar num hospital militar na época da guerra, foi de longe, a maior e mais gratificante experiência da minha vida. Ali, poderia ouvir e sentir, o que realmente se passava. Recebíamos notícias sobre o número de vítimas, sobre os estragos, bombas atômicas, as inúmeras experiências que os alemães faziam com os judeus, e coisas jamais pensadas.

No ano anterior, navios brasileiros, como o “Cabedelo”, “Taubaté”, “Olinda” e o “Buarque”, já haviam sido torpedados por alemães ou italianos. A situação de “paz” no Brasil, ficava a cada dia, longe ser verdade.

O Presidente Getúlio Vargas decretou estado de guerra apenas em agosto de 1942, o que para muitos, fora tarde.

Durante todo o ano, o que sabíamos eram notícias de vários navios brasileiros atingidos, milhares de mortos. O governo brasileiro uni-se aos Estados Unidos, e o presidente americano Roosevelt, chega a nossa querida Natal no começo de 1943, reforçando a idéia que o Brasil, com suas bases navais aliadas ao Estados Unidos, deveriam implantar ali, uma “segunda tropa”.

Estava ali, segmentada a vinda de mais de 125 mil soldados americanos. A chegada dessa notícia deixou em alvoroço a maioria das moças da cidade, pois o retrato que fazíamos de um soldado americano era este : alto,lindo,olhos azuis,educado e louco por brasileiras!

Neste intervalo, os aliados ocupam Nápoles. Em sua ofensiva, os exércitos alemães chegaram até o Norte da África, de onde estavam sendo empurrados de volta pelos exércitos aliados. Neste ponto, o perigo da guerra já havia sido afastado da África e do Sul da Itália até Nápoles, agora retomada pelos aliados. O campo de batalha onde os pracinhas brasileiros iriam atuar era a região Norte da Itália, ocupada pelos germânicos até o final da guerra.]

O dia-a-dia no hospital era tranqüilo, tirando pela sempre nervosa enfermeira chefe, Sra. Iolanda. Era uma mulher de olhos profundamente escuros, cara enrugada e má, mas, acreditávamos que fosse só pra botarmos medo.

Da minha sala de aula no curso de enfermagem, foram trabalhar comigo mais três amigas, no hospital de base, o que em deixou muito feliz. A Josefa era mais baixinha, olhos vivos e muito inteligente . Mª José, a mais alta, linda, loira e olhos verdes. A Jeane, muito humilde, quase não termina o curso. Era de longe, a mais inteligente da turma. Cabelos crespos e curtos, uma mulata.

Num desses dias, ficamos sabendo que na base militar, teríamos a presença de forças aliadas na guerra. Seriam grupamentos com soldados e oficiais dos Estados Unidos. Esses soldados viriam ao Brasil por tempo indeterminado. Fariam aqui, pois, uma “segunda base” de observação e apoio logístico, pois a situação geográfica de minha cidade era favorável, e em caso de haver necessidade, esses soldados sairiam de Natal direto pra África e de lá, para a Europa, confundindo as tropas inimigas.

Em duas semanas, começaram a chegar os aviões com centenas de soldados americanos à Natal. Para nossa alegria, também vieram Enfermeiras, e doces massiças de antibióticos e outros remédios que não conhecíamos. Amizade com esses estrangeiros era difícil. Primeiro, por causa da língua, e segundo, por desconfiança... Aliás, ninguém confia em ninguém em época de guerra.

Apesar de tudo isso e das dificuldades, eu e minhas amigas melhoramos o inglês com 3 meses de convivência com aquelas enfermeiras tão lindas, educadas e destemidas. Como imaginar que uma moça recém-formada na escola de enfermagem em New York ou Boston, viria prestar seus primeiros socorros na pobre Natal, no Brasil?

O movimento no hospital de base aumentava a cada dia. A princípio era do povo da cidade mesmo, mas logo depois, notamos que os soldados estavam aparecendo com freqüência. O motivo? Queriam namorar! Bem, até ai, não havia notado ninguém, no meio de centenas de homens bonitinhos..digo, lindos!

Minhas amigas não se contentavam em “curar as feridas” dos soldados, elas conversavam e começaram a namorar. A enfermeira Josefa começou a namorar o soldado Richard O´Connor, um rapaz muito inteligente, que usava óculos e se esforçava pra entender o português.

A enfermeira Maria José, que não era boba nem nada, conseguiu fisgar o mais bonito de todos, o sargento Fischer. Saiam frequentemente pra ir ao cinema ver os filmes da Atlântida, e os shows pagos pela força aérea americana, comandados por astros que vinham à Natal, só pra distraí-los. Na ocasião, os que sempre apareciam aqui eram: Dick Farney, Aurora Miranda, Oscarito, e a impagável loira Kim Novak.

As únicas que não conseguiram namorado, eram eu e a enfermeira chefe, Sra. Iolanda, acredito que pela cara de mal-humor. Até minha irmã do meio, a Estela, arrumou namorado americano. “Deixa meu pai saber disso, Estela. Namorando um estrangeiro”.

Aliás, meu pai via com desconfiança esse namoro da Estela com o americano. Resolveu então, convidar o rapaz pra jantar em nossa casa, com a intenção de conhecê-lo melhor.

Jason Philips, era um rapaz de mais de 1,80, até moreno pra os padrões americanos,pois até então, morava numa fazenda no Texas com sua família. Era muito educado e em pouco tempo, conquistou a todos da família com seu jeito. Estela estava muito feliz. Neste mesmo período, ela arrumou emprego na bicleteria do cinema, o que nos dava, a mim e minhas amigas, entradas aos domingos de graça nas matinês.

Em junho de 1944, partiram pra o Rio de Janeiro com o propósito de embarcarem nos navios americano “General Mann” e “General Meigs”, pra Itália, cerca de 15 mil soldados brasileiros, entre eles, muitos norte-grandenses, nossos amigos de escola, filhos de Natal e todos os estados do Brasil.

Ao final de uma ano de batalha na Itália, o Brasil teria embarcado mais de 25 mil “pracinhas”, entre soldados, oficiais, médicos e enfermeiras. Para orgulho nosso, as 67 enfermeiras que foram pra Itália, foram condecoradas e receberam a patente de primeiro-tenente.

Um dia de sábado, foi minha folga e fui com minhas amigas do hospital, visitar a base naval, com seus navios de guerra americanos. Lá chegando, fomos direto conhecer o que havia de mais moderno na época. Todos navios enormes, belos, e por dentro, artilharia de guerra, rapazes...quero dizer,soldados,igualmente belos!

Depois de três meses trancafiadas num hospital, eu e minhas amigas, estávamos querendo conhecer os rapazes e “treinar” nosso inglês recém-renovando. A cada grupo de 6 pessoas que entrava no navio pra visitação, apareciam de 3 a 4 soldados, ávidos em nos dar informações, que incluíam, suas escalas de folga, claro.

Conheci neste dia, o sargento americano Steven O´Brian. A enfermeira chefe mostrou um sorriso que não conhecíamos no hospital, ao conhecer o oficial tenente Allan Carter, um senhor de uns 45 anos, muito culto e ducado.

Durante nossa visita, notamos que alguns pares se formavam, e a enfermeira chefe não desgrudava os olhos do tenente Carter, pra nós, um bom presságio. Quem sabia aquele namoro não amansaria o coração daquela mulher de feições amargas?

O´Brian era um dos responsáveis pela casa de máquinas, e parecia muito orgulhoso disso. Tinha completado 23 anos, e aquela missão era sua primeira saída dos Estados Unidos. Morava em Ohio, tinha pais vivos e 4 irmãos, sendo ele também o mais velho, como eu.

Como já estava com 19 anos e ainda não namorava, achei que seria loucura tentar um namoro com um soldado americano. A guerra poderia terminar a qualquer momento, eles iram voltar a seu país de origem.

Porém, não só a guerra abriu meu coração, como a incerteza do amanhã. Em tempos difíceis como aquele, e vendo nossos amigos norte-grnadenses partindo pra campos de batalha na Itália, não tínhamos muita esperança se existiria amanhã, futuro, velhice...não havia indício dessas coisas.

Como não havia muito “futuro” a planejar, resolvi aceitar o pedido de namoro de Steven.

Os momentos que passava junto a Steve, eram maravilhosos, pois me tiravam da rotina cruel do hospital, das doenças e das febres que assolavam o nosso dia-a-dia.

Quando não íamos ao cinema, tratava de mostar a Steve os pontos turísticos de Natal, e ele parecia muito interessado e deslumbrado.e ao final de 9 meses, ficamos noivos.

No dia 06 de junho de 1944, aconteceria a grande vitória e o começo do tão sonhado “estado de paz”. As forças aliadas invadem a Europa, com a intenção de neutralizar Hitler,e conseguem! O fim da guerra está próximo.

Com o enfraquecimento da Alemanha, os países aliados vão reforçando suas bases em campos europeus, e há a necessidade de mandar pra Europa, os soldados que aqui estavam. Às centenas, eles deveriam partir imediatamente, sob pena de corte marcial.

Steven e eu, já noivos e com planos de casamento, tivemos que ir ao porto pra despedida, coisa impensada por mim, há alguns meses. Estava eu, ali, como uma enfermeira, mulher, insegura, despedindo-se de meu amado como tantas amigas de minhas fizeram no ano anterior. Choramos juntos e em silêncio, pois nestes momentos, apenas os olhares de conforto e esperança, poderiam traduzir o que sentíamos.

Passamos os meses de junho a dezembro de 1944, ouvindo notícias dos combatentes pelo rádio, e raras vezes, recebia telegrama das bases na Itália. Essas notícias eram comunitárias, não viam direcionadas a minha pessoa, não tinha como. Fiquei mais amiga de Josefa, Maria José e de Jeane, que ao final de um baile, também estava namorando.

A cada carta de uma de nós recebíamos, era um alívio, um conforto pra nossas almas. Sempre uma perguntava pra outra: ”recebeu notícias?” Uma confortava a outra e assim, passamos os meses de ausência de nossos amados.

A cada navio que era afundado, torpedado; era uma angústia sem fim.

Colávamos os ouvidos nos rádios, na esperança de que algum correspondente de guerra dissesse o nome de nosso amor, de nosso homem combatente, mas sempre viam notícias coletivas, e tínhamos que nos contentar.

Apesar de acompanhar tudo, ficava muito difícil a comunicação naquele final de guerra, pois cada informação passada, poderia servir como localização das tropas, o que tornava a situação irremediavelmente sub-humana.

O ano de 1945 nasceu: triste em todo o mundo, não havia motivos de comemoração. A Europa devastada e pobre.

Em meados de fevereiro de 1945, recebemos muitas cartas, algumas vieram juntos a outras, que na ocasião certa, não puderam ser entregues. O´Brian estava bem, apesar de parecer nervoso e inseguro. Nossa amiga Josefa, veio aos prantos junto a mim:”Emília, recebi um comunicado...O´Connor foi ferido...está morto”. Podia sentir o que disse, sem que ela precisasse falar, pois seus olhos eram de dor, uma dor que só os apaixonados têm.

Em março, recebemos os primeiros “pracinhas” de volta à Natal. Que horror meu Deus! Nada que ouvíamos no rádio era tão real, como presenciar aquelas feridas, braços e pernas mutiladas por bombas e metralhadoras alemãs. A dor que esses homens sentiam era transcedente, varava nossos olhos, nossos corações. Até nós, acostumadas ao lado de dor do hospital, às vezes, não conseguíamos conter as lágrimas.

Vários rapazes que conosco brincavam, estudaram, estavam agora mutilados e com a vida devastada pela guerra. A guerra que um louco antecipou com a Polônia, numa onda de megalomania e supremacia bélica.

Milhares de vidas interrompidas, mutiladas e traumatizadas com a loucura e a doença até os finais dos tempos.

As notícias começaram a ficar mais escassas, e apesar de ser muito religiosa e fervorosa, perdia as forças com freqüência, chorava uma morte não anunciada de Steven.

Em 30 de abril daquele ano, tivemos a notícia que a Rússia tomara Berlim, e que Hitler suicidara-se. Abriu-se me meu coração a esperança que Steven estivesse vivo, apesar de saber que a “segunda base” em Natal, estaria sendo desativada. O Brasil começou a mandar seus Pracinhas de volta pra casa. Apesar de saber que o meu Steven não viria naquela multidão de Pracinhas, a cada novo navio ou avião que chegava, fazia questão de olhar se tinha um “sargente O´Brian” no meio. Listas e mais listas passaram na frente de meus ávidos e chorosos olhos...nada de Steven, nada de sargento O´Brian ou qualquer coisa que se parecesse com ele.

Sempre voltava pra casa chorando, mas meu coração era teimosa, jovem e muito esperançosa.

Só em 7 de maio a guerra foi dada como oficialmente findada, mas as dores apenas começavam. Países inteiros devastados, e o Japão continuava a brigar com os EUA.

O número de Pracinhas que chegava à Natal, era agora muito pequeno, em relação aos dias do começo de abril daquele ano. Porém, apesar de sentir que o meu Steven tinha sido deslocado pra o Japão, nunca havia deixado de ir ao porto ou à base aérea dá uma olhada.

Meus dias de enfermeira com as estrangeiras que já haviam partido, estavam sendo testados naqueles Pracinhas. Aqueles mesmos que saíram com esperanças e voltaram com terror em seus olhos, lágrimas de sangue que nenhum Estado jamais conseguirá amenizar.

Estava agora, no setor da UTI do hospital de base, muito atarefada, e no meio daquilo tudo, recebi um comunicado de um soldado que se encontrava na enfermaria 14: “gostaria de ver a enfermeira Emília” num português muito ruim.

Fiquei surpresa, pois dos meus amigos e natalenses que foram à Itália, quase todos estavam em casa se recuperando. Não dei muita atenção, mas ao final da tarde fui na enfermaria ver o que o tal soldado queria comigo.

Fiquei surpresa demais! Ao entrar, vi um homem com as pernas queimadas, porém com o pronto atendimento já efetuado; cabeça enfaixada, que só dava pra ver um olho, um olho azul. No período dos estrangeiros me Natal, o que mais se viam, eram homens de olhos profundamente azuis, pra mim aquilo não era novidade.

Porém, ao me aproximar do homem de pernas queimadas, pude observar que conhecia “aquele” olho azul...era Steven...meu Deus..era Steven, tinha certeza!

Corri e o abracei, apesar de cuidadosa com seus ferimentos, não poderia deixar de beijar e abraçar o “meu soldado”.

- Amor, o que houve?Onde esteve?O que faz aqui em Natal?Não foi destacado pra o Japão?

_ Calma,minha querida,veja meu nome agora, apontando pra o fichário na beira da cama. A placa dizia: “Pracinha Marcondes, herói da segunda guerra”.

Fiquei espantada e feliz ao mesmo tempo.

_ Como conseguiu isso, Steven?

_ Cometi um crime por amor. Este Pracinha morreu perto de mim, mas ouvi quando eles disseram:

_ “Esse vai ser enterrado com honras em Natal”. Então, troquei de roupa com ele, enquanto outros Pracinhas eram encaminhados ao avião da FAB, sem nenhuma proteção em seus corpos, pois não havia tempo para condolências. Simplesmente não pensei em mais nada, a não ser, voltar ao Brasil, pedir desculpas a família do Pracinha Marcondes, e viver com você, meu amor!

_ Isso é loucura Steven, uma linda e maravilhosa loucura! Agora não sei se choro ou se ria,que situação! Amor, você sobreviveu na europa, nos campos japoneses, merece viver em paz, aqui comigo. Te amo, Steven! Obrigada por voltar e salvar nossa estória de amor!

Simone Lessa
Enviado por Simone Lessa em 24/01/2008
Reeditado em 05/11/2011
Código do texto: T831590
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