O Agiota
Valter está sentado no sofá com bermuda e camiseta, uma lata de cerveja na mão. Na televisão passa uma partida de futebol do time pelo qual ele torce contra o maior rival. Xinga, grita, fica feliz, o humor varia conforme a partida. De repente alguém bate na porta, Valter tão concentrado chega a ignorar, bate na porta de novo e mais forte. Um pênalti é marcado contra o time dele. E a porta insiste em bater.
VALTER (furioso pelo pênalti grita):
Depois do pênalti eu atendo a porta. Espera um pouco.
OSVALDO:
Não perca seu tempo, o goleiro de vocês não vai defender.
Valter escuta isso e sai correndo para atender a porta.
VALTER:
O que foi que você disse?
OSVALDO:
É você mesmo com quem eu queria falar.
VALTER:
Disse muito bem: “queria”, porque não vai falar agora. Tenho coisa mais importante pra fazer (ameaça a fechar a porta, mas antes diz:) Por acaso você torce pr’aquele time de maricas.
OSVALDO:
Não tente desconversar. Hoje é o seu último dia, ou me paga hoje ou seu corpo terá mais furos do que queijo suíço.
VALTER:
Pagar? Desculpa senhor, mas acho que bateu na porta errada.
OSVALDO:
Você não me engana (entra a força pela porta, jogando Valter de lado)Eu aceito cartão de débito também. Seja rápido, quero embora logo. Ih seu time ta perdendo hein, falei que o frangueiro do seu time não ia defender.
VALTER:
Quem você pensa que é pra entrar na minha casa. Pode sair já ou chamo a polícia.
OSVALDO:
Se eu fosse você não faria isso. É simples, você me paga e eu vou embora. Mas como você é uma pessoa generosa irá me chamar pra tomar um copinho de cerveja, ta muito quente lá fora.
VALTER:
Não vou pagar porque não devo nada a ninguém. Até os meus dízimos estão em dia.
OSVALDO:
Você é muito novo pra estar com Alzheimer, há de se lembrar de mim, Osvaldo Otagia, o agiota mais bondoso da região. Mas fique tranqüilo, aceito esposas abaixo de quarenta anos como forma de pagamento.
VALTER:
Senhor me desculpe, mas eu não te conheço e acho que se enganou de casa.
OSVALDO:
Não me venha com essa desculpa. Engraçado que eu me lembro de você. Por que será? Eu te emprestei uma quantia há muito tempo atrás e nunca me pagou, todo esse tempo que passou e já está me devendo quatro vezes mais que eu te emprestei. (começa a reparar nos aparelhos da sala) Belo DVD você tem, aparelho de som de respeito, uma tevê bacana hein. Eu aceito tudo isso como pagamento.
VALTER:
Espera ai, eu lembro de você sim, mas se for o que to pensando isso já foi pago no mesmo instante. Eu estava no bar,louco por um pinguinha mas estava sem um puto no bolso, ai você apareceu e me emprestou o dinheiro. Só que eu te paguei naquela mesma tarde.
OSVALDO:
Sabia que ia se lembrar, mas não pagou e se ta pensando que eu aceitei aquela rodada de truco como pagamento está muito enganado.
VALTER:
Aliás, lembro que você pediu revanche e que se perdesse me pagaria, acontece que você perdeu e nunca me pagou, nesse caso é você quem está me devendo.
OSVALDO:
Não queira inverter os papéis.
VALTER:
Não tente desconversar, só porque levou um zap na cara, não quer me pagar.
OSVALDO:
Não foi um zap, foi um picafumo(ouros)
VALTER:
Não foi um zap? Então estou enganado.
OSVALDO:
Viu? Agora me pague pela pinga.
VALTER:
Sinto-lhe informar,mas lembro-me que naquela época não estava bebendo pinga, tinha feito uma promessa para Santo Eulálio e fiquei sem beber, e naquele dia pedi uma tubaína.
OSVALDO:
Não conheço este santo, está blefando. Agora por favor, me dê um dinheiro, qualquer coisa.
VALTER:
Não!
Osvaldo se senta. Abaixa a cabeça, começa a chorar.
VALTER:
Por que ta chorando?
OSVALDO:
Vou ser demitido, não vou tirar minha licença.
VALTER:
Demitido? Licença?
OSVALDO:
Sim, é um grupo de agiotas e se não voltar com dinheiro não conseguirei licença pelo conselho regional de agiotagem.
VALTER:
Por acaso você é estagiário de agiota.
OSVALDO:
Sim, mas não fale pra ninguém.
VALTER:
Desculpe-me, mas não vou te pagar nada, não posso deixar que mais um agiota se forme. Agora dê o fora.
OSVALDO:
Só espera um pouco, o jogo foi pra prorrogação.
Valter pega o controle da TV e desliga.
VALTER:
Agora me explique uma coisa, como você chegou até minha casa, e da onde inventou essa dívida?
OSVALDO:
Está na página 70 do Manual de Agiotagem, aliás, preciso do dinheiro pra terminar de pagar o livro, sabe como é, estagiário sofre pra ganhar dinheiro.
VALTER:
Quer dizer que escolheu o primeiro idiota que lhe veio a cabeça e bateu na porta dele.
OSVALDO:
Não sei se é idiota, não foi assim que o pessoal do bar falou pra mim. Só falaram que você é presa fácil.
Valter se encaminha até a porta de saída.
VALTER:
Vou embora.
OSVALDO:
Vai não. Não quis dizer isso.
VALTER:
Fique tranqüilo, só vou até o bar pra continuar a ver o jogo.
OSVALDO:
Assiste da sua casa.
VALTER:
Não é mais minha. Fale pro seu chefe que eu não tenho o dinheiro pra pagar a dívida.
OSVALDO:
Mas você não deve nada.
VALTER:
Eu devo ou não devo?
OSVALDO:
Não, era só uma simulação.
VALTER:
Seu desgraçado, você me enganou!
OSVALDO:
Calma, calma, eu deixo você pagar uma quantia irrisória só pra não se sentir ofendido.
VALTER:
Seu cara de pau. Mas já que não devo nada e que você não é um agiota de verdade, vamos tomar uma, jogar um truquinho.
OSVALDO:
Truco não. Não jogo mais isso, desde aquela vez que perdi de doze a zero. Não mais, não esqueço aquele zap.
VALTER:
Então estava mentindo. Você perdeu de zero e ainda me deve.
OSVALDO:
Vamos fazer um trato, pra acabar com isso. O jogo que ta passando deve ir pros pênaltis porque os nossos times são muito ruins. Se o meu time vencer você me paga e vice-versa.
VALTER:
Fechado (após dizer liga a televisão que mostra os pênaltis, está na última cobrança, o time de Valter vai chutar e ao chutar acaba a luz.
Os dois se olham, sentam no sofá e abaixam a cabeça.
Fim.