LIBERDADE

Domingo… O céu ilustrava um azul limpo de nuvens… O sol radiante prenunciava como seria o dia. Era carnaval! Passeava pelas ruas do Bixiga, atenta a todos os detalhes da festividade, vislumbrada com tanta alegria. Evanice sempre teve vontade de conhecer o Bixiga. Ouvia, quando criança, o pai, que é arquiteto, falar sobre obras icônicas do centro de São Paulo, a escadaria do Bixiga era uma delas. “Construída em 1929 pelo prefeito Pires do Rio, a bela obra, com 84 degraus e 16 metros de altura, uniu a classe alta com a classe baixa do bairro.” Lá estava ela, entusiasmada, descendo aqueles degraus. Iria conhecer a tradicional feira de antiguidades, que ocorria todos os domingos, na praça Dom Orione, em frente a escadaria. Ouvira falar do tradicional Cannoleria Cannoli do Bixiga que ali havia e estava louca para provar um daqueles doces. Chegou ao famoso carrinho de doces.

Olhou… Olhou… Até que escolheu um cannoli. Parecia delicioso! Era muito gostoso mesmo! Incrível! Pensou, saboreando o delicioso doce. Ao terminar, resolveu andar pela feira de antiguidades, quem sabe encontrasse alguma coisa interessante. Ela parou em uma barraca com obras artesanais e contemplou a beleza de cada peça. Percebeu a aproximação de alguém e, descompromissadamente, olhou para a pessoa ao seu lado e, rapidamente, desviou e voltou a fixar o olhar, em uma reação bem típica das pessoas que não acreditam no que veem. Não é possível! Você!? Pensou consigo mesma!

− Adão, é você? Ela pergunta ao belo jovem negro. Ele olhou, desconfiado e perguntou:

− Eu te conheço?

− Sou eu, Evanice! Não se lembra? Disse euforicamente.

− Claro! É você mesma!? Disse o rapaz, ajeitando os longos dreads. Você continua linda!

− Você está muito bonito também!

Evanice e Adão se conheciam desde pequenos, haviam prometido se casarem quando crescessem, até fizeram um casamento simbólico, coisa de criança. Mas, separaram-se quando o pai de Evanice soube do envolvimento dos dois e decidiu mandar a mãe de Adão, que era empregada da família, embora para acabar com o caso. Evanice era só tristeza, ficou meses sem falar com o pai. Mas a vida não para e, aos poucos voltou a falar com Thomas. Ela mantinha a esperança de que o universo, um dia, cruzaria os caminhos dela com o de seu Amor novamente. E, por capricho do destino, lá estavam eles juntos novamente!

− Você está com muita pressa? Disse Evanice.

− Não, só estava dando uma volta.

− Vamos colocar o papo em dia, convida a jovem.

− Sim, vamos sentar-nos ali naquela praça.

O rapaz, ainda, meio sem jeito, olha para jovem tentando trazer ao presente, lembranças e sentimentos do passado.

− Como você está? O que tem feito? Ele pergunta.

− Ah… Nada demais, me formei em arquitetura, estou procurando na área, só para ter experiência, sabe! Em casa, as coisas continuam do mesmo jeito, meu pai e minha recebem os amigos deles todos os sábados e é aquele papo furado de sempre. E você? Me conta!

− Eu me formei em história e estou morando em uma quitinete aqui no centro.− E sua mãe? Evanice pergunta interessada.

− Sabe, depois que saímos de sua casa, minha mãe demorou muito tempo para arrumar outro emprego, ela teve que lavar roupas no bairro onde morávamos e eu ajudava sempre que dava, mas minha mãe não gostava muito, queria que eu estudasse. Bom, agora estamos bem. Os dois se olharam fixamente e sentiram aquele antigo sentimento forte no peito! Sentiram uma abrasadora atração até que, finalmente, beijaram-se. Evanice nunca sentiu um sentimento tão forte por outra pessoa, era um cuidado, uma profunda ternura envolvida por uma arrebatadora paixão. Ela não queria se distanciar de Adão novamente e, subitamente, perguntou ao jovem se ele gostaria de se encontrar com ela no dia seguinte. Ele, com um sorriso largo e terno, aceitou. Entre beijos e caricias, ficaram juntos até o fim da tarde.

No outro dia, tinham combinado de se encontrar na praça da República, Evanice queria conhecer os blocos de carnaval do Centro. Adão pensou em levar a moça para conhecer O Bloco Esfarrapado que era um dos mais antigo da cidade de São Paulo. Foi fundado por um grupo de moradores do bairro em 1947. O rapaz a viu surgir na saída do metrô e acenou, ela acenou de volta ao moço e caminhou até ele. Envolvendo-a em seus braços, ele beijou-a carinhosamente:

− Que saudades! E tem apenas um dia que não nos vemos!

− É verdade! Ela concorda.

Adão tinha planejado tudo! Iriam comer alguma coisa e depois, iriam para concentração do bloco de carnaval. Evanice estava muito contente. Tudo estava perfeito. Ela ouvia o rapaz contar sobre os blocos de carnaval de São Paulo e do Centro, ele disse que segundo alguns historiadores, o carnaval de rua de São Paulo datava mais ou menos 100 anos e tinha dois

tipos de carnavais até a década de 1950: um carnaval do burguês branco e um popular negro dos cordões. Falou ainda que o carnaval de rua em São Paulo, na década de 1930, era no centro da cidade, nas ruas Libero Badaró e no Largo de São Francisco e que não havia desfiles de escolas de samba como hoje. Ela o olhava, fascinada, sem dizer nada. Seguiram pelas ruas até chegarem até a Rua Rui Barbosa, pararam em um pequeno restaurante para comer uns petiscos. Sentaram-se. Enquanto esperavam, Conversavam. Evanice comentou como achava interessante aquele bairro, a cultura dos imigrantes italianos. Adão fitou-a nos olhos e, meio sem jeito, disse:

− Sabe, nem sempre foi assim. Antes dos italianos, no período da República, de 1890 até 1950, o bairro era habitado pela população negra, em suas ruas havia jornais e associações de imprensa negra, um exemplo é o Clarim D’Alvorada, que lutava pela defesa da cidadania e identidade negra. Esse bairro é conhecido como italiano porque houve ações sistemáticas

para apagar a história da população negra que viveu e ainda vive aqui. Não entendo por que tanto ódio. Evanice segurou as mãos do amado e beijou-lhe os lábios macios acalentadoramente. Comeram e beberam. Depois do aperitivo, abraçados, caminharam até a concentração do bloco na R. Treze de maio. Acompanharam o bloco ao som das marchas de carnaval alegres, felizes, plenos. A jovem olhava apaixonada para Adão, contemplava o corpo rijo do rapaz, os traços, fortes e suaves ao mesmo tempo, daquele rosto amado. Pensava… Eu amo-o, amo-o de verdade! E, num impetuoso movimento, puxou Adão para si, beijou-o e disse: “Eu te amo!” Tomado pelo mesmo sentimento, em meio a música e os foliões, tomou-a nos braços e repetiu: ”Te amo! Te amo! Te amo!” Ao mesmo tempo que fitava os meigos olhos da jovem, cantava o refrão da música que tocava “Dentro dos meus braços… Os abraços hão de ser milhões de abraços… Apertado assim, colado assim, calado assim… Abraços e beijinhos, e carinhos sem ter fim… Que é pra acabar com esse negócio de você viver sem mim”. Seguiram o bloco até o fim da tarde. Depois, pararam em um bar para tomar uma geladinha. Enquanto esperavam a cerveja, Evanice pensava em tudo o que conversaram.

− Sabe Adão… pensei no que você disse sobre o Bixiga ser um bairro negro no passado. É triste saber que o preconceito racial ainda está bastante presente em nossa sociedade; olhava seu amado com ternura. Infelizmente, disse o rapaz:

− O preconceito racial é institucionalizado e perpetuado pelos agentes da lei, por parte dos representantes políticos e por uma elite branca preconceituosa. Entre os jovens, são os jovens negros que mais morrem por causa da violência, dos desempregados, os negros são maioria e no mercado de trabalhos, os negros são os mais desvalorizados, recebendo

os menores salários. Evanice, neste momento, lembra-se de como o pai despediu a mãe do seu amor e, como quem pede perdão, olha para Adão. O rapaz olha condescendente:

− Está tudo bem! Continuou: “Por isso devemos promover o protagonismo da população negra, isso será muito importante na luta de classes.” Entre um e outro copo de cerveja, beijaram-se. A noite acaba na quitinete de Adão. Com um toque suave, o moço acaricia a macia e perfumada pela alva da jovem e ela percorre, com suas mãos, o vigoroso corpo negro do amado, a paixão abrasava os corpos em meio a beijos e sussurros. Estavam prontos para o Amor.

Na manhã daquela terça-feira, Evanice acordou com Adão levando-lhe o café à cama, sentia-se plena, feliz, como ele era educado, gentil, ela pensava… Nunca mais renunciaria àquela felicidade, aquele amor.

− Sente aqui comigo, pede a jovem meiga e manhosa, toma café comigo.

− Pensei em um passeio diferente, acho que você vai gostar! Disse, tomando um gole do café da namorada. Mas antes, quero te mostrar o mirante aqui do Copan, “você conhece amor?“ Perguntou. “Já ouvi falar, mas, não conheço.” Responde a moça e continua: “Adoraria!” Depois do café, subiram até o terraço Mirante. A vista de lá era esplendida, dava para ver a cidade todinha, jardins, as avenidas arborizadas, a Avenida Augusta todinha até a Paulista. Em meio àquele cenário magnifico, Evanice pensava nela e em seu amado como se reencontraram, não queria ficar distante dele! Naquele momento ela percebeu que não conseguiria viver sem ele. Ainda envolvida pelos pensamentos, disse: “Adão! Estava pensando… Seria muito bom se ficássemos juntos, estou dizendo… Morar juntos, o que você acha?” O rapaz respondeu que estava pensando justamente a mesma coisa. A quitinete daria para os dois ele não queria ficar longe dela. Abraçando o namorado, a jovem

disse:

− Você me faz muito bem, vou buscar minhas coisas amanhã!

− Vamos! Nosso passeio espera! Disse o jovem animado. Desceram, andaram até o metrô mais próximo e embarcaram em sentido Liberdade. Lá chagando, Evanice olhava pensativa… Já conhecia o bairro nipônico, mas não conseguia imaginar o que Adão planejara; ficava atenta aos detalhes, tentava descobrir o que iriam fazer. Pararam no meio da praça; seus pensamentos são interrompidos pela fala do jovem: “Sabe? Assim como o Bixiga, a Liberdade também era um bairro habitado pela população negra e passou por um processo sistemático de apagamento histórico.” “Você sabia que antes, esta praça era chamada “Largo da Forca?” Perguntou. “Não! Não sabia.” Responde surpresa. “Verdade!” Afirma. Acrescentou: “Aqui, foram torturados e mortos mulheres e homens escravizados que lutaram pela liberdade. Foi também aqui, em 1821, que o soldado negro, que liderou uma rebelião contra a coroa portuguesa por direitos iguais entre soldados negros e portugueses, Francisco José das Chagas, conhecido como Chaguinha, foi morto enforcado. Na primeira tentativa, a corda arrebentou, livrando o réu da morte, o povo vendo aquilo, clama pela liberdade! Tentaram pela segunda vez, e pela segunda vez, a corda arrebentou. Considerando aquilo um milagre, os populares clamam mais alto “liberdade!” Na terceira

vez, seus algozes foram vitoriosos. Chaguinha morre! Este é o possível motivo do nome praça da Liberdade e do bairro.” Evanice ouvia atentamente, quase que não acreditando em tanta crueldade.

− Vamos! Apressou o jovem empolgado. Temos mais coisas para ver. Seguiram até a Rua dos Estudantes. Uma ruazinha sem saída e, no fundo, uma pequena igreja. Olhando fixamente a capela, o jovem explicou a Evanice que se tratava da Igreja da “Nossa Senhora dos Aflitos” e convida-a a entrar. Dentro não cabiam mais de dez pessoas, Adão então contou a namorada que abaixo do piso, exatamente onde estavam em pé, descansavam os corpos dos escravizados fugitivos, que buscavam refúgio ali. No altar daquela humilde igrejinha, Evanice e Adão ajoelham-se em reverência, pedindo a benção ancestral. Beijamse! Voltaram à praça da Liberdade. Na esquina da praça, o rapaz comenta que aquela seria a última parada do casal, a Capela das Almas dos Enforcados. Adão explica que os escravizados vindos da várzea do Tamanduateí, subiam a Tabatinguera, paravam e viam, estarrecidos, o triste fim de seus irmãos condenados à morte, muitas vezes, ainda pendurados na forca. Evanice sentiu um aperto no peito, olhou o amado com sobressaltada ternura e abraçou-o forte. Adão lhe acariciou o rosto dizendo: “Está tudo bem! Quer uma água?”, querendo agradar a namorada. “Vou comprar!” Disse atravessando a rua sem esperar a resposta. Evanice acompanhou-o com os olhos. Adão entrou em um barzinho, ainda muito cheio por causa do último dia de carnaval, ao lado da entrada do metrô. Ele pediu uma água gelada ao balconista e aguardou… Depois de alguns instantes o balconista voltou com a garrafa geladinha! O jovem foi até o caixa e pagou a água. Ao sair, esbarrou em um senhor já muito alcoolizado, pediu desculpas e saiu. O homem olhou Adão por trás, colocou a mão no bolso como que conferindo a carteira. O rapaz andou em direção a namorada, já podia vê-la do outro lado. Contemplou o lindo rosto da amada, pensava nos bons momentos que teriam quando morassem juntos..., Mas, Evanice estava com uma tristeza no olhar, ela correu ao seu encontro com a mão estendida como que se estivesse pedindo para ele parar. Antes que ele atravessasse a rua ouviu-se três disparos e ele, sem forças, caiu. A jovem jogou-se ao chão: “NÃO!” Gritou! Tendo acolhido Adão ao colo.

− Tá ali seu guarda, é esse aí que roubou minha carteira! Dizia o senhor que estava no barzinho tendo olhado o jovem coberto com sangue! Evanice aos prantos gritou: “Por quê!?”

Depois de alguns minutos, formou-se uma grande multidão em torno dos amantes. Furando a multidão, chegou o balconista do bar, assustado com o que via: “Senhor, sua carteira estava caída embaixo do balcão, encontramos quando a gente varria.” O homem pegou a carteira e saiu apressadamente com medo de retaliações. Adão ouviu da calçada às guias plácidas de uma jovem amada o brado vacilante, olhou para cima e viu a imagem de Chaguinha que lhe estendia a mão e o sol, em raios fúlgido, brilhou no céu naquele instante e, em seus últimos suspiros, gritou:

− LI… LIBERDADE!

Alessandro Wiederkehr
Enviado por Alessandro Wiederkehr em 02/04/2025
Reeditado em 06/05/2025
Código do texto: T8300650
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