JAZZ
Bolo, balão, confetes. Empadão: daquele que enche os ares com a agradável fragrância de sovaco úmido. Ou frango cru. Um formigueiro avança sobre os doces. Não, são apenas os pirralhos. Esganiçados. Pais e mães: panças, celulite, dentes amarelos, olheiras. Mesas de latão Brahma: são como as mais loucas bandas de metal quando se arrastam. Um rasgo na terra. Uma senhorinha de nauseabundos perfumes: a sogra. Tapinhas nas costas, presentinhos de grego...
– Sinceramente, para com essa merda!
Olha a boca!
– Tá louco! Quer que eu enlouqueça?
Ah, Alberto. Você não sabe o que o espera. Muda logo de vida!
– Você quer que eu viva... isso aí?
Não, isso é apenas o que você acha que vai ser, mas pode ser muito melhor.
– Tá bom.
Então, qual vai ser a de hoje?
– Música, birita, donzelas.
Isso mesmo. O de sempre. Lá vai Alberto comemorar o trigésimo oitavo ano de seu aparecimento neste mundo.
– Expressão feia, hein?!
Shiu! Eu que decido o que dizer, está bem?
– Tá certo. Sem discussões. Só quero tomar umas, ouvir um jazz e encontrar Ana.
Lógico. Sempre atrás de um rabo de saia, não é?
– Claro.
Já falei para segurar a onda! Vai dar problema isso!
– Olha, não me enche. Hoje não.
O. K.!
Faça o que quiser. Pelo menos, avisei.
Alberto deixa o trabalho. Já é noite. A brisa notívaga se arrasta pela cidade. Sopra o asfalto quente e varre os restos de mais um dia atribulado. O neon do letreiro do bar pisca, como uma cigana de esquina, prometendo aquilo que já conhece de cor: a velha melodia da fuga. Ele suspira, acende um cigarro. Pode ir para casa, mas não faz o seu estilo.
Então, entra no Clube de Jazz. Baforadas de charuto, whiskey, vinho, narizes em pé. Figurinha carimbada no local. Cumprimenta uns e outros, mais as senhoritas.
Senta-se num canto, os olhos traçando as curvas da vizinha. Luzes baixas, salão a conversar. Uma, duas, três doses. O palco está armado. Vem a alegria acompanhada dos músicos.
Inicia-se o contrabaixo.
Turum, durum, tuuuu…
Curioso. As notas graves rememoram um sujeito angustiado que Alberto conheceu. Um caso que deu errado: como era o nome dela mesmo? Não sabe dizer. Mas o maridão descobriu quando voltou para casa mais cedo. Alberto deu o fora só de cuecas.
Turum, durum, tuuuu…
– Te parto, te mato, acabo contiiigo!
Turum, durum, tuuuu…
Entra a bateria.
Pá, tum, diss…
Agora parece o falatório de uma fulaninha malcriada do trabalho. Boa de cama, é verdade. Mas chata que dói!
Pá, tum, diss…
– Ah, ui, sim!
Olhos revirando, unhas arranhando, gritos reverberando!
Pá, tum, diss…
– Ah, ui, sim!
Turum, durum, tuuuu… Pá, tum, diss…
A banda crescia em audácia, assim como o público.
Palmas, palmas e mais palmas!
Iguais àquelas que ele recebeu um dia, quando comentou o assunto da fulaninha com um amigo, bonachão também.
Trim, trim, trim!
Opa, que instrumento é esse?
– Instrumento, que nada! É notificação do celular!
Deixe no silencioso, sim?!
– Espere um pouco!
Ele ativa a coisa: “Quebro tua cara! Fique esperto!”
– Mais um maridão emocionado...
Homem, já disse para tomar cuidado!
– Tô de boa!
Tá nada! Qualquer dia sai na manchete do Cidade Alerta!
– Ah, cala a boca, vai.
Alberto sempre promete que vai parar. Toda vez é a última. Toda vez é um erro. Mas depois de uma ou duas doses, depois do acorde certo, do perfume inebriante, o ciclo recomeça. O jazz é assim. A vida dele também.
Eis que entra o trompete.
Fu, fu, fuuuuu…
Ah, é melhor não dizer o que isso recorda a Alberto.
Fu, fu, fuuuuu…
– Fode! Fode! Fooode!!!
Opa! A memória invasora. Dessa vez, com a atendente do clube.
– Isso mesmo. Lembro bem… pena que não trabalha mais aqui!
Uma pena mesmo. As coisas sempre desandam, não é? Será que foi por causa dele? Melhor não pensar nisso agora.
Então, a pequena orquestra se ajeita, e todos tocam em uníssono, lançando o improviso pelos ares.
Turum, durum, tuuuu… Pá, tum, diss… Fu, fu, fuuuuu…
A plateia salta das cadeiras, palmas e pés batendo no ritmo da melodia espontânea. Alberto vai junto. A cadência é afrodisíaca. Sempre foi. Cada nota, uma amante diferente.
Turum, durum… Pá… Fuuu… Turum... Diss... Fuuu...
– Te parto, te mato, ah, ui, sim, fode!
De súbito, a orquestra para. Aplausos soam. Vem aí o solo.
Trim, trim, trim!
Eu disse para desligar essa coisa!
– Tá bom, tá bom! Deixe só eu dar uma espiada.
É Ana: “Alberto, não vou poder ir hoje. Feliz aniversário!”.
– Desgraçada!
Ah, o programa deu errado, hein?!
– Calado! Eu sabia que ela não era confiável…
Volte para sua esposa, homem!
– Quem sabe! Mas agora só quero terminar o jazz. Depois digo que atrasei no trabalho.
Olha, olha!
– Silêncio, por favor! Vai entrar o pianista!
Descortina-se um sujeito de fraque. Desfilando elegância, pousa a destreza no teclado. Do piano, saem borboletas, fadas e princesas. Delícias a fazer cócegas nos ouvidos de Alfredo.
Tan, tan, tu, tururu...
Agora, as belas notas remetem a apenas uma pessoa: Sofia. A única melodia que jamais desafina na bagunça da sua vida. Mas ele, teimoso, insiste em quebrar o compasso. Por quê? Talvez pelo medo de uma harmonia que exige mais do que ele pode dar. Talvez por pensar que, uma vez entregue ao amor, não haverá espaço para a liberdade.
Ele é o músico do improviso. Ela, da sinfonia.
Tan, tan, tu, tururu...
Desvelam-se reminiscências cálidas, melífluas. Tal qual o instrumento do artista, Alberto dedilha os contornos de Sofia. As ondas plácidas a tocar a praia morena, sob a música imortal da maresia.
Recomeça o trompetista. Manso.
Tan, tan, fu, fu...
Ah, Sofia! Nunca olvidou o primeiro olhar, a primeira vez.
Cheiro, toque, cama, maravilhas.
Amor verdadeiro!
– Meu Deus, o que foi que eu fiz?!
Agora pesa a culpa, não é? Por que trai Sofia?
– Não sei. Sou doido, impulsivo, pervertido!
Tan, tan, fu, fu, pá, tum, diss!
Turum!
O remorso desce como a nota grave do contrabaixo. Sofia confia nele. Tenta confiar. E ele? Arranha essa confiança feito um disco velho. Cada escapada, um novo risco sobre a superfície frágil do amor.
As notas martelam continuamente a cabeça. Como o ritmo insistente da bateria.
Tan, tan, fu, fu, pá, tum, diss!
Uma peça funesta. Um aviso! Escute bem!
– Pare com isso!
Mas Alberto já está afogado num mar de lágrimas. É Sofia vibrando nas notas. Bela, serena, felina. Ah, os olhos: como duas esmeraldas. O sorriso? Um tracejado divino. Vê-se novamente mergulhado na paixão de outrora. A paixão adolescente.
Tan, tan, tan, turum, turum, pá, diss!
A harmonia continua. É como a charanga do casamento: tocam-se alvissareiras notícias. No altar, o véu da alegria e o intercâmbio do eterno.
Mas então se reinicia o improviso.
Turum, turum … Pá… Fuuu… Turum... Diss... Fuu... Tan, tan, tan...
O piano perde-se nas cacofonias reinantes.
O doce retirado da mão da criança.
E voltam as outras notas e amantes.
Tan, pá, fá, tan, diss!
Thaís, Patrícia, Flávia, Ana, Débora.
O volume cresce, a consciência evanesce.
O público se levanta, Alberto se adianta.
São levados pelo ritmo frenético da composição, jogados de lá para cá. Pobres almas infelizes, perdidas no tumulto! Mas elas gostam. Gostam até não haver mais saída. Daí se desesperam.
Não agora, não agora...
Turum, turum … Pá… Fuuu… Turum... Diss... Fuu... Tan, tan, tan... Diss!
Diss!
Diss...
Param os músicos.
A morte chega.
Não deles: da melodia.
Aplausos!
Clap, clap, clap!
Uma mesura, a despedida, e a cortina se fecha. As luzes se apagam, as lágrimas correm. Cadeiras se arrastam, os últimos goles descem. Abraços e cumprimentos.
É o fim.
Não de Alberto. Ainda não. O olhar se mantém perdido: semblante de mendigo.
Uma mosca pousa no uísque, mas logo abandona a piscina, embriagada. Ele fica a se comparar a ela: um bêbado inútil que voa por aí, de carne em carne.
Ah, a culpa!
Então, traga o remanescente com uma careta. Os dedos em riste, o cartão na maquininha. Logo pisa a calçada, entra na noite a esmo.
Ele para na esquina. O vento frio raspa o rosto. O neon da boate reflete no asfalto molhado. Um carro passa. O esgoto respinga. Ele ri. Ou talvez queira chorar. No fim das contas, há pouca diferença...
Alberto, vá com calma!
– Por que sou assim: este crápula?
Ainda tem saída. Volte para casa, sua esposa não suspeita de nada.
– Você acha?
Sim. Abandone logo tudo isso.
– Mas, e se ela descobrir? Há muita poeira debaixo do tapete...
Então você terá que ser honesto. Suplique o perdão dela e de Deus.
– Difícil, depois de tantos anos assim.
Trim, trim, trim!
Deixou isso aí ligado, não é?
– Ah, esqueci. Vamos ver quem é agora.
“Tá fodido, meu irmão!”
O mesmo número de mais cedo.
– Alguém está querendo buchicho. Um mal-amado qualquer.
Ainda põe a culpa nos outros!
– Ah, vê se me esquece!
Não posso. Tenho que pôr você na linha!
– Chega!
Alberto chama o Uber. O celular vibra. Como um relógio, sempre avisando que o tempo dele já passou. Embarca no expresso da meia-noite.
– E aí, meu chapa. Alberto, não é?!
– Sim!
– Seu dia parece que não foi dos melhores!
– Como é?!
Desconcertado pela observação espontânea, nosso homem indaga o fulano:
– Está tão na cara assim?
– Ô! Andou derramando as lágrimas na bebida?
– Um pouco!
– Aposto que é por causa de mulher.
– Acertou...
O desgraçado é bom. No volante e na astúcia.
O morcegão voa infrene pelas alamedas, em busca de almas perdidas.
– Então, é apaixonado ou culpado?
– Um pouco dos dois!
– Ah, coisa séria!
O psicólogo-motorista esboça uma risada.
– Amigo, você escolhe ser um ou outro: apaixonado ou culpado. Porque tentar ser os dois ao mesmo tempo... bem, isso nem Miles Davis conseguiria improvisar!
Alberto, concordo integralmente!
Ele medita. Os prédios passam indagadores. Um júri a deliberar o veredito.
– Mas se eu fui culpado a vida inteira, qual é o problema de ser mais um dia?
O motorista dá de ombros.
– Às vezes, o último dia é o que importa.
O carro para.
– Juízo, hein! Ficou em doze reais, mas, pra você, tem o valor da consulta.
– O quê?!
– Isso aí. Então, são cinquenta pilas.
– Tá doido?!
– Brincadeira, meu irmão. Resolve sua vida.
Dinheiro passado, o limiar é cruzado. O prédio jaz à frente, pensativo, imponente. Janelas brilhantes: como olhos vigilantes. Na portaria, uma plataforma de embarque. Para onde? Ninguém sabe.
– Eu vou sair dessa vida, vou sim. Chega disso!
Assim espero, hein, Alberto!
3, 2, 1.
Ding!
Escancaram-se os portões do elevador. Um convite ou uma sentença? O homem embarca na cabine estreita, uma nave que sobe ao desconhecido. Só que o passageiro é um astronauta cachaçado, escorando-se nas paredes para não cair. O aperto do peito cresce pela gravidade. Ou pela lembrança de Sofia? Esta ressoa como um acorde melancólico, desafinando-se na nota de alguma amante.
1, 2, 3.
Ding!
Chega ao saguão de entrada: um planeta tumular. O corredor estende-se ao infinito de uma mente alcoolizada, e os tropeços são meteoros sobre o carpete. Mas, enfim, as chaves tilintam entre os dedos trêmulos; escorrem pela fechadura feito um gin vagabundo pela garganta do infeliz.
Então, a porta se abre: o negrume o recebe.
O espaço? Não, apenas a velha treva de seu interior.
– Sofia?
Nada. As estrelas o observam da janela, indiferentes como juízes eternos, que espreitam os humanos e suas loucuradas.
– Cadê você?!
Eis que mais uma delas está por vir.
– Atrasei um pouco, querida. Coisa do trabalho... Argh!
Pois vem um gancho por trás e o lenço com amônia.
Braços, dedos e unhas a brigar.
Ar!
Ar!
– Preciso!
Alberto?!
Alberto...
Escuro.
Escuro.
Tique-taque.
Tique-taque.
O relógio de pulso resmunga.
Acorda.
Acorda?
Mas o escuro continua!
Ele tenta se mover. Impossível.
A vida atada às suas próprias paixões, numa cadeira.
– O que está acontecendo?!
“Pá!”
Um tapa.
– Ei!
“Pá!”
Outro.
– Pare, por favor!
O choro a escorrer moribundo.
Pá-tético.
É, Alberto. Encontrou sua sina, finalmente. O traído vem para te levar. Já deve ter trucidado Sofia.
– Olha, me perdoe! Cada um vai pro seu lado! Esqueça o que aconteceu!
“Chipá!”
Um estalo de... um chicote?!
– Pelo amor de Deus! Eu pago o que quiser!
“Chipá!”
O fim está próximo. Então vem o escárnio. O último argumento. A verdade pulula com a saliva.
– Acabe logo com isso aí. Mas saiba que Ana é uma delícia e você, um pau-mole. Por isso ela veio pra mim.
Silêncio. O ego foi atingido.
– Alberto, do que você tá falando?
Opa! Uma voz feminina. É Sofia!
Ela retira a venda.
Luz.
Alberto vislumbra a esposa, peladinha, com um açoite nas mãos. Eles gostam dessas coisas. Sádicos. Como chama isso mesmo? “Bondage”?
Mas a surpresinha de aniversário derreteu no fogo da ira.
– Ah, merda.
– Que história é essa aí?!
– Sofia, vamos conversar!
– Não tem conversa nenhuma!
O chicotinho é abandonado como se cobra fosse. Ela some na cozinha.
– Ave Maria, cheia de graça...
Sofia retorna. Ah, aquele corpinho é o paraíso, pensa o homem. Mas as feições, agora, são o inferno. As mãos por detrás dão o ar da desgraça.
– Sofia, eu posso explicar. Vamos encerrar isso...
Sem resposta. A leoa se aproxima em busca da caça.
Levanta uma pata. A garra se mostra: uma faca.
– Eu cansei disso, Alberto! Não aguento mais!
Sofia para a poucos passos dele. Respira fundo. Olhos de esmeralda agora frios como gelo ártico. A lâmina brilha sob a luz fraca.
– Sofia... – a voz de Alberto falha.
O silêncio do caixão sendo fechado.
Ele sente o coração no pescoço. A culpa escorrendo dos olhos como cera derretida.
Se não estivesse preso:
poderia se ajoelhar,
poderia implorar,
poderia dizer que a ama.
Mas nada disso se encaixaria no ritmo da vida que ele escolheu.
E o tempo para a mudança já se esgotou.
A faca se ergue.
– Não, não faça isso!
O instrumento desce.
Uma.
Duas.
Três.
Sei lá quantas vezes.
A última vista foi a de um borrão rubi e... de uma sombra.
Uma sombra que o engole, com duas asas e dois chifres.
Aqui, despeço-me de Alberto: ele toma o caminho do tártaro.
Eu, seu anjo da guarda, trilho o do céu.
Tristeza infinita me acompanha.
Do averno perdi a barganha.
Enquanto Sofia ri da traição.
Desgraçado, falhei em minha missão.