ELE NÃO TINHA PERCEPÇÃO...

Ao Sindrome

Ele não tinha percepção

No sentido de se aperceber da linguagem não explícita dos outros, no sentido de perceber em gestos ou atitudes como funcionava a pessoa com quem lidava.

Era uma espécie de “cego sensitivo”, que só percepcionava os sinais mais evidentes e explícitos, o que lhe ocasionava graves danos a nível social.

Nunca por isso tivera um amor que fosse correspondido, pois na altura da percepção que tantas e tantas vezes leva à paixão ele falhava redondamente no principio do caminho desta... Amou, amava e continuava a amar, mas eram amores mentais, que não conseguia aliar à vertente física que procurava e consumava em noites de bebida, onde ao lamentar mais um amor fracassado encontrava companheiras fátuas e caducas que complementavam o físico mas que lhe deixavam um rombo na alma que ele era incapaz de tapar, vazando por ai as suas infinitas mágoas e inúmeros fantasmas com os quais aprendera a viver, numa vivência dualista que em nada contribuíam para o seu bem estar e equilíbrios emocionais, sendo tal um ciclo que se repetia a cada nova paixão que ele sabia ir ser intensa mas também tão etérea como as estrelas que apreciava. As suas companheiras de ocasião, levadas por um romantismo etílico por vezes lhe diziam que faziam amor com ele, mas ele negava tal, e falava em sexo, apenas a saciação temporária da libido, sendo que o amor estava reservado para as suas “mulheres impossíveis” como chamava àquelas que amava e que jamais haveria de alcançar, pois apesar do fogo de uma ilusória paixão nocturna por vezes se prolongar por alguns dias, quando elas se apercebiam da sua falha, seguiam o caminho das outras na estrada do destino, deixando-o só para novas paixões, para novas desilusões para novas aventuras do nada.

Para ele o tocar de um tambor de guerra ou a suave melodia sensitiva vindas da outra parte eram o mesmo som, indistinto, só conseguia perceber algo quando tal era de tal ordem explícito que até ele encarava a realidade, a maior parte das vezes tarde demais…E eram poucas as pessoas que, por uma questão de personalidade ou de feitio se davam ao trabalho de lhe mostrar com clareza o caminho perigoso que ele estava a trilhar na sua ausência percepcional…

Se pudesse existir alguma ironia existencial, ele formara-se na área das Ciências Sociais, e no tempo que lá trabalhou até era considerado um bom técnico, dado os problemas que tinha de resolver estavam explícitos em relatórios e a forma de os solucionar lhe fora bem ensinada, tendo ele alguma sensibilidade e gosto em ser útil em os resolver; mas era “meio-técnico” e a vertente instintiva que também era necessária para os casos mais prementes faziam que ele novamente falhasse…Decidiu pois mudar de área e dedicar-se à ciência bibliotecária, onde a analise e tratamento documental não precisavam de instinto mas sim de método e de muito trabalho, ao qual se dedicava com invulgar mestria.

Outra ironia era o facto de instintivamente ele ser escritor, principalmente dessas coisas do amor, onde derramava todo o ser enorme sentir aprisionado, sendo estimado pelas palavras que jorrava de forma tão doce e harmónica, ao ponto dos seus leitores e leitoras lhe perguntavam como ele era capaz de abordar esse amor de forma tão profunda, tão bela, ao que ele se calava, encolhendo os ombros e interiormente se lamentando que só no papel a sua falha não existia.

Viveu assim uma longa vida com amor avassalador, com a sua falha, com a sua sensibilidade apurada para o verbo mas não para a acção, pois tinha ao mesmo tempo um dom e uma enorme maldição…

Ele não tinha percepção