Morto não fala

Morto Não Fala

Cardoso I

A manhã estava ensolarada quando Hugo se espreguiçou na rede, ouvindo o som das ondas quebrando na praia. Fazia três anos que deixara sua antiga vida para trás, trocando a rotina sufocante de empresário por dias preguiçosos em uma ilha esquecida do Caribe. Nenhum chefe, nenhum imposto, nenhuma preocupação. Apenas sol, rum e o mar.

Forjar sua morte fora mais fácil do que imaginava. Um carro abandonado à beira de um penhasco, alguns documentos queimados e um cúmplice bem pago para espalhar a história certa. O mundo acreditou que Hugo Vasconcellos estava morto.

E ele estava satisfeito com isso.

Pelo menos até aquele dia.

Foi no bar da vila que Hugo viu a notícia, estampada na tela da velha televisão:

"HERDEIRO DESAPARECIDO: FORTUNA DE 80 MILHÕES PODE FICAR SEM DONO"

Ele congelou. A foto no canto da tela era dele, um retrato antigo de quando ainda vestia ternos e frequentava reuniões entediantes.

"A socialite Aurora Vasconcellos faleceu aos 89 anos, deixando uma herança milionária. Sem filhos, seu único sobrinho e herdeiro, Hugo Vasconcellos, foi declarado morto há três anos. Caso não apareça um sucessor legítimo, a fortuna será destinada à caridade."

Hugo sentiu o estômago revirar. Ele conhecia sua tia Aurora—uma mulher excêntrica e rabugenta que jurava nunca lhe deixar um centavo. Mas, aparentemente, mudara de ideia antes de morrer.

O problema era simples: ele estava morto.

Ou melhor, oficialmente morto.

Nos dias seguintes, Hugo não pensou em outra coisa. A tranquilidade da ilha perdeu o encanto. Cada gole de rum agora tinha gosto de arrependimento. 80 milhões. Dinheiro suficiente para comprar ilhas inteiras, sumir do mapa sem precisar se esconder.

E foi assim que, três semanas depois, Hugo desembarcou no Brasil.

Vestindo um disfarce discreto, ele entrou no cartório e exigiu seu direito.

A atendente, uma mulher de óculos grossos, o analisou com desinteresse.

— Nome?

— Hugo Vasconcellos.

Ela digitou algo no computador e franziu a testa.

— O senhor deve estar enganado. Hugo Vasconcellos faleceu há três anos.

— Eu… é uma longa história, mas estou vivo.

A mulher ajustou os óculos.

— Tem documentos que comprovem isso?

Hugo hesitou. Tinha um passaporte falso, mas não ajudaria.

— Olha, moça, eu sou Hugo Vasconcellos. Vocês precisam corrigir esse erro.

Ela ergueu uma sobrancelha.

— Se o senhor é Hugo Vasconcellos, então comprove. Mas devo avisar que, legalmente, um morto não pode herdar nada.

Hugo sentiu um calafrio.

— Como assim?

— Morto não fala, senhor. Nem herda. Nem existe. Seu dinheiro já está em processo de doação.

Hugo saiu dali sentindo o mundo girar. Passou os anos acreditando que enganara o sistema, mas no final, o sistema o enganou.

Sem identidade, sem direitos, sem nada.

Olhou para o jornal dobrado no banco ao lado. Sua própria foto estampada com a palavra "desaparecido".

Quase riu da ironia.

Agora, restava-lhe apenas uma certeza: ele desaparecera tanto que nem podia mais voltar.

Ivonoel cardoso
Enviado por Ivonoel cardoso em 24/03/2025
Código do texto: T8293348
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