A coisa tá feia
A Coisa Tá Feia
Cardoso I
A cidade se espelhava diante de Andrade como um espelho quebrado, refletindo pedaços de um mundo que não parecia mais seu. O concreto e o vidro brilhavam ao sol que, apesar de intenso, não aquecia mais. Cada rua, cada esquina parecia abrigar uma tensão indecifrável, como se algo fosse se romper a qualquer momento, embora ninguém se atrevesse a tocar o tema. A morte se tornara algo cotidiano, uma sombra que passeava pela cidade sem pressa, sem presságio. Não era mais um lamento no ar, mas uma presença constante, uma respiração pesando sobre os ombros dos que ainda se atreviam a existir.
Andrade sentia o peso de cada passo. Seus olhos percorreram as ruas lotadas de gente, mas ele sabia que, mesmo em meio à multidão, sua existência não passava despercebida. Não era apenas o suor nas costas, o calor do meio-dia que o incomodava. Era a sensação de estar sendo observado, de ser uma presença estranha que incomodava os outros. Ele já soubera, há muito, que sua cor não era apenas uma marca visível na pele, mas um estigma carregado como uma sentença de morte antecipada.
Ele se lembrou de Nelson, seu amigo. Nelson, o sonhador, o idealista que acreditava, ainda que com desesperança, que a educação poderia salvar a si mesmo e aos outros. Nelson, que, com suas palavras afiadas e o brilho nos olhos, ousou entrar na universidade, ocupar um espaço que não lhe pertencia aos olhos dos outros. Nelson, que se fez presente onde muitos outros temiam ir, sem saber que sua presença seria a última marca que ele deixaria no mundo. A morte de Nelson foi rápida, como um trovão que ecoa e, antes que alguém tenha tempo de se esconder, já se foi, deixando um silêncio que se arrasta pelas paredes, pelas bocas fechadas, pelos corações que não ousam mais bater tão alto.
Aquele tiro, disparado em plena luz do dia, foi a última lembrança de Nelson. Mas a dor não estava apenas na perda. Estava no que viria depois: o silêncio, as perguntas não feitas, as culpas distribuídas entre os que, como Andrade, não eram mais capazes de se calar. Ele passava as noites acordado, imerso na lembrança do rosto de Nelson, na dúvida insuportável que pairava no ar: por que ele, por que nós?
A coisa estava feia. E Andrade sabia disso com uma clareza dolorosa. A morte não escolhia mais o lugar. Nem os restaurantes mais caros, nem os parques frequentados pelos ricos e brancos, nem as universidades onde os negros eram vistos como intrusos, nem as praças onde o povo se reunia. A morte se estendia como uma praga, levando todos que ousassem ocupar um espaço fora do seu destino preestabelecido. Os negros eram mortos por existir. Mortos por ocupar a política. Mortos por frequentar lugares "não apropriados". Mortos por falarem, por pensarem, por ousarem existir além do que lhes era dado.
Andrade continuava a caminhar, cada passo mais pesado que o anterior, mas sem saber como parar. A cidade o engoliria de qualquer forma, como engolia tantos outros, sem deixar vestígios, sem fazer questão de se lembrar. Ele havia buscado justiça, sim. Tinha feito manifestações, dito palavras duras nos tribunais, escrito cartas para jornais, mas o mundo parecia incapaz de ouvir. As palavras escorriam como água pelas pedras e, por mais que ele gritasse, ninguém parecia realmente escutar.
Foi quando, em uma esquina silenciosa, ele encontrou Manoel, o velho que conhecia todas as histórias da cidade, que sabia onde as sombras se escondiam e, ainda assim, resistia. Ele estava lá, como sempre, sentado na mesma pedra, com o olhar perdido na vastidão da rua, mas de algum modo atento a tudo o que acontecia ao redor.
— Menino, a coisa tá feia — disse Manoel, a voz rouca, mas firme, como se cada palavra tivesse o peso de uma revelação.
Andrade se aproximou, sem saber o que dizer. O velho parecia carregado de uma sabedoria antiga, e a ideia de que ele poderia ter uma resposta, uma solução, parecia absurda, mas ainda assim, algo no fundo de Andrade desejava ouvir.
Manoel deu um suspiro, olhando para o céu, como se visse algo além do que os olhos de Andrade podiam enxergar.
— A coisa tá feia, sim. Mas você já parou pra pensar que, apesar de tudo, ainda estamos aqui? — disse o velho, com um leve sorriso nos lábios. — Não caímos. Não cedemos. E isso é resistência, rapaz. Não é só sobre os que já foram. É sobre os que estão aqui e ainda lutam, ainda falam, ainda se erguem.
Andrade ficou em silêncio, sentindo a carga das palavras de Manoel pesar sobre seus ombros. Ele não sabia se aquilo era consolo ou um chamado, mas de alguma forma, sentiu uma chama se acender dentro de si. Resistir não era apenas uma questão de gritar, mas de continuar, de existir, de ocupar os espaços que o mundo tentava lhes negar.
A justiça talvez não viesse de onde ele esperava, talvez nunca viesse. Mas a verdade, aquela verdade crua, jamais deixaria de existir. Os mortos, como Nelson, continuariam a gritar em suas lembranças, e enquanto houvesse vida, ainda haveria uma luta. E talvez, no fim, isso fosse o suficiente.
A coisa estava feia, sim. Mas Andrade sabia que, enquanto houvesse resistência, ainda haveria esperança.