Mutação

... E não há melhor resposta

Que o espetáculo da vida:

Vê-la desfiar seu fio,

Que também se chama vida,

Ver a fábrica que ela mesma,

Teimosamente, se fabrica,

Vê-la brotar como há pouco

Em nova vida explodida;

Mesmo quando é assim pequena

A explosão, como a ocorrida;

Mesmo quando é uma explosão

Como a de há pouco, franzina;

Mesmo quando é a explosão

“De uma vida Severina.”

(Morte e Vida Severina)

MUTAÇÃO

E o que brota no chão seco é poeira. Dessa poeira bravia, que assola o mundo de cinza e mancha as folhas grossas da Algaroba. O gado assiste a tudo, imparcial, na divina essência ruminante que transcende o entendimento humano. Seu desespero faminto é mascarado, até o dia em que, de tão magro, nem com o chocalho pode mais. Daí até a queda é questão de dias, horas.

Urubu, esse aproveitador de morte alheia, assiste a tudo feliz. Na verdade, deve ser esse o segredo da criação: a desgraça de uns alimenta a vida de outros. Já vi isso acontecer, em outros feitios.

Mas eis que a vida aqui, desfia de fato, seu rumo. Esse rumorejar dolorido, como pisar em caco de vidro, como se deixar entalar com o próprio ar que se respira, de tão ardente que é. De tão doloroso que é. De tantas vidas que traz dos lugares nos quais passa e dos aromas dos quilombos dos quais arrasta os espíritos injuriados atados ao tronco.

E de fato, segue-se por seguir. Anda-se por andar. Vive-se porque viver é mais forte. Morrer é descansar, simplificar demais. Se a barriga cresce é parido mais um filho pra esta poeira venenosa encalacrar e ver morrer, entre carcaça de gado e espinho de Aveloz.

Só a flor de cacto ainda espera pra brotar, enquanto assiste tranqüila ao uivar do vento em noite de lua, e de dia, padece sob as nuvens que passam ralas na copa azul do céu.

Enquanto a última enxada enferruja calada, escorada numa tapera, num canto. Entre barro seco e besouros.

Debaixo do Sol, com sede e fome, o sertanejo se metamorfoseia pra estar na terra. E da poeira demente, surge à cor da raça de sangue forte e olhos sofridos. A pele não interessa mais, a dor que sangra a carne opõe-se ao sonho de ser único... Por isso são irmãos, sangue engrossado na lida, na fome, na angústia. Vidas marcadas pelas mesmas mortes, dos mesmos filhos. As mesmas chagas.

Dói essa igualdade pela inexpressão. E esse é o batismo pela poeira.

A dilacerante mutação que sofre o homem para assemelhar à terra. Quem nela vive, difere-se dela; questão de sobrevivência.

Inútil não acreditar, os filhos do sertão são cinza(s).

(Jessiely Soares)