Rodeio na Pecuária

“Rodeio na Pecuária”

A primeira vez em que fui e que me lembro, eu tinha parcos 13 anos. De tarde. Com colegas da escola. Uma turma enorme. Batemos perna por lá. Era longe. Depois do fim da Avenida Araguaia. Indo pros lados do Jaó. Nem sabia que bairro era. Somente: Pecuária. O ano? 1976. O ônibus? Da Araguarina, e na volta da Reunidas. Pois passou um HP e estava cheio. Nomes que nem vejo circulando por aí.

A porta de entrada era majestosa. O cheiro de bosta de vaca misturado com urina, onipresente. Coloquei minha bota Carnello. Tinha uma Rege’s, feita pelo maior agro-boy de Goiânia, o Marcos sapateiro. Mas preferi a original. Uma calça de veludo e camisa xadrez, de flanela. Em Goiás faz frio duas semanas ao ano, justamente nesta época. O que impede de mofar de vez vestuários raros nestas plagas, tais como estes que citei.

Gozando uns aos outros, éramos fortes e coesos. Dando ombradas nos colegas, coisas de adolescente. Mas teve uma hora que eu me separei da turma e fiquei somente com ela. De mãos dadas. Tremi. Achei esquisito, mas continuei. Seu tio criava gado. Os meus também. Mas eu não era muito afeito as lides do campo. O que sempre gostei de fazenda –apesar de ser goiano- foi a represa para nadar e o cavalo para montar. Porém, devido aos meus interesses secundários e terciários, lá fui.

As barracas dos estados eram enormes e tinham cores diferentes. Senti-me à vontade com a paradinha na do Maranhão. E comi um pouco de jussara, que depois de uns vinte anos chegou a Goiânia com o nome de açaí. Moda e sabor atrasados. Ela detestou. Mas um churrasquinho generoso na do Rio Grande do Sul salvou o final da tarde. Seria de gado ou de gato?

Fomos ver os bois. Impressionante o tamanho do saco deles. E a cor também. Rósea. Evitei fazer maiores comentários. Pois a idade me impedia de certas gracinhas. Ela desafiou-me passar a mão em um nelore mocho. Mal sabia que meu padrinho o Hamilton Velasco –que era o sósia perfeito do Lênin- havia me dado um bezerro desses, quando nasci. Não só acariciei o bicho com dei tapinhas nas suas ancas e disse: - “Êeeh, boi.” Igualzinho eu presenciei tantas vezes. Fiz sucesso.

Foi uma sucessão de zebuínos. Nelore, guzerá, indu-brasil, gir e o que o meu pai mais gostava: o girolanda. Mistura goiana que ajustava o corte com o leite. Tempos depois descobri com meu colega médico - dono do Faraó, o doutor Júlio Bernardes-

que era o maior criador dos branquinhos sem chifre, que circunferência testicular era importante mesmo. E também que Nelore e Angole eram cidades da Índia. Além do que a barbela –que eu achava linda- longa demais atrapalhava no trato no campo, pois machucava o animal e dava chance de pegar doenças.

Passei por todas as cocheiras. Sempre ao seu lado. Um olhar acabrunhado e alguns discretos abraços. Éramos da mesma altura. Para quebrar o gelo comprei uns estalinhos. Que no meu tempo nós chamávamos de biriba. Fi-la rir ao explodir alguns, nas suas botas de cano alto e ela dançar desajeitada ao espocar dos meus arremessos. Seus mocotós grossos de bailarina –estudava no Música- denunciavam coxas também torneadas. Para impressionar, bati um deles na minha testa. Fechando meus olhos, claro. Truque que aprendi com o Tonhão, meu vizinho mais velho. Ela se preocupou, limpou meu rosto com delicadeza e disse:

- Seu bobo!

Foi a deixa para os meus avanços. Tentei um entreolhar, mas de longe ouvi:

- Ô gente, vamos ver os cavalos!

A turma me achara. Eles vibraram com a idéia de que estávamos namorando, pois a danada não soltara minhas mãos para nada. Mas ninguém disse lhufas. Fomos em direção aos estábulos, que ficavam na ponta direita de quem entra. Passos largos, saltando. Como nas cantigas de roda. Infantilmente fizemos um coro de “atirei o pau-no-gato”. Não tinha essa besteira do politicamente correto. Fomos chutando lata de cerveja até lá. Felizes.

Adorei o manga-larga. O marchador então, nem se fala. Que navio. Que balanço legal. Árabes e PSI (puro-sangue inglês) são mais bonitos, mas não têm esse andado. Assustei quando deparei com o Percheron. Patudo e peludo. Francês. Maria Clorinda, minha amiga veterinária, hoje explica como salvou um monte deles do calor do centro-oeste e que o cavalo português é ainda melhor para apresentação de marcha e acrobacias que exigem ensaios e repetições.

Desta feita a turma unida falava da masculinidade eqüina. Coisa de menino. Aí num zurrar característico, apareceu do nada um jumento Pega. E seu descomunal membro. Silêncio momentâneo. Depois, uma risada só. As meninas não gostaram, mas riram acanhadas. Aí surgiu na minha mente deformada de menino-homem a idéia genial.

- Vamos andar a cavalo?

Todos toparam. Faltou então pedir aos tratadores, lógico. Depois de muito relutar, eu com minha verve, fui.

- Oi, seu moço. A gente pode montar nesses cavalos, aí?

- Quem? Vocês? Ahahahahah! Se um de vocês subir no Capeta e ficar cinco segundos nele, eu deixo andar em todos. Até nos pôneis Shetland...

Aquilo soou como um desafio-mor. Apesar de vários colegas terem muito mais experiência do que eu, senti que a ordem veio direto a minha pessoa. Num misto de ingenuidade pueril e macheza ancestral, refutei.

- Põe a sela que eu monto neste capetinha!

A moçada riu a valer. E gritou:

- Aêeeeeeeeeh peão!

Meu orgulho subiu para cabeça. Minha cara avermelhou. E não podia mais voltar atrás.

Olhei de rabo-de-olho, mas sem deixar de dar uma olhadinha no rabo (ela era muito gostosinha) da minha parceira. E vi seus olhos abaixarem num assentir medroso e com a pontinha de orgulho que só as grandes mulheres sabem fazer. E sorriu. Aquele sorriso me encheu de coragem e nem ouvi o cara falando.

- Quem disse que homem usa sela? Macho monta em pelo!

Fomos em direção ao círculo cheio de palha e serragem, que hoje os idiotas chama de tattersal. Capeta era preto. Longilíneo, musculoso. Cavalo inteiro. Ignorava-me solenemente. Aliás, era todo pleno em sua cavalice jovem. Como eu. Uma besta querendo subir em outra. Mas não havia tempo para mais nada.

Peguei no cabresto e olhei bem nos seus olhos redondos e de cílios enormes. Capeta

era bonito. Passei a mão firme em sua crina e disse baixinho:

- Capeta, capeta, capeeeeeeeeta.

Ele fez que não ouviu, mas escoiceou e tentou empinar. Minhas pernas bambearam. Eu podia correr, não era feio. Eu podia desistir, ninguém ligaria. Mas não, eu fui pra cima. No relinchado vi seus dentes alvos e todos de leite, presumi que tinha três anos. Estava no auge.

Rodopiou um pouco à minha volta. Cavucou o chão e abaixou a cabeça. Lembrei-me do meu pai que dizia que cavalo é bicho que nasceu para ser mandado. E que só um, na manada inteira, é que é o líder. Os demais obedecem. Obviamente que esse era um macho-alfa dominante, claro.

No momento em que ele novamente deu uma refugada, girei meu corpo leve, de no máximo quarenta e pouco quilos e montei. Foi um salto só. O bicho se endireitou e parecia não acreditar que aquele menino atrevido, loirinho e cabeludo estava em cima dele.

Deu dois passos para frente e arqueou o lombo. Já haviam passados dois poucos segundos. Uma eternidade. Aí deu de bunda. Como minhas pernas não eram compridas o suficiente para fixar-me melhor, deslizei para trás e num reflexo, tranquei-as. Era como se eu tivesse esporeado o animal. O preguinho que saía do taco da minha bota

- também preta e luzidia como o garanhão- fincou nas ancas do dito cujo.

Ele reagiu da pior maneira. Empinou. Vi meus amigos bem próximos das patas do Capeta. Temi por eles e esqueci que estava em cima do Bucéfalo. Preguei-me como carrapato na crina e puxei o freio tão forte que vi sangrar a sua boca negra de cavalo doido. Eu era seu Alexandre e agora a conquista tornava-se obrigatória. Mais dois infinitos segundos tinham ido.

Louco de raiva e dor Capeta tentou me morder, num átimo dei-lhe um tapa na cara. Foi a melhor bolacha que desferi na minha vida. Então aconteceu o inesperado. Capeta parou. Brecou. Imobilizou-se. Seu resfolegar era impressionante. Eu mal me dava conta que tinham se exauridos mais dois segundos. Eram seis no total. O cavalo domado levantou a sua cabeçorra e deu dois passos garbosos à frente, como se me apresentasse ao público.

Meus colegas aplaudiram, o tratador cuspiu de lado e ela... ela sorriu novamente. E eu vi o sol, vi a lua e não vi que me distraí e Capeta fez jus ao seu batismo. Jogou-me bem longe, numa corcoveada espetacular. Como uma cadela desatrela do seu macho, eu voei acima do grupo, girei meu tronco para a esquerda – sou canhoto- e tentei cair num rolamento, igualzinho no judô. Não consegui bem.

Aterrisei na merda do ombro. Ouvi um “creck”. Aquele estalido característico de quem leva um tomoenague e se racha. No alto da minha experiência de seis fraturas em meu combalido esqueleto, vi que quebrei alguma coisa. Pá!

Parado no bosteiro, camisa rasgada, boca melando, levantei-me de chofre. Olhei bem na cara do Capeta e ele caminhou lentamente em minha direção fazendo aquele “frum”, “frum”, típico dos cavalos amigos. Lambi meus beiços, ele também. Fiz um carinho leve no seu pescoço. Ele deu meia-volta e partiu como se nada houvesse ocorrido. Todos falaram ao mesmo tempo:

- Machucou?

- Só o orgulho...

Ela foi a primeira a chegar e abraçou-me com força. Apertou meu peito esfolado e quando o primeiro amigo se aproximou e deu aquele tapa tipicamente masculino eu desabei. A clavícula havia quebrado.

- E aí, alguém quer andar de cavalo? O diabo loiro ficou seis segundos, ganhou do Capeta.

Ninguém disse palavra. Fomos embora e um deles que o pai era médico, fez uma tipóia com a minha própria camisa.

Na saída, já estava escuro. Fomos em direção ao portão. Milho assado com manteiga. Comi rapidinho. O povo noturno já estava chegando. Uns ponchos amassados, uns chales com cheiro de naftalina. E novamente me surpreendi. Ela chegou por trás, como um gatinho se esfregando nas pernas do sofá e perguntou:

- Já comeu churros?

Olhei para aquele troço comprido, coberto de açúcar e com doce de leite no meio. Confesso que detestei. Mas devido a minha humilhante situação, não pude recusar.

Mordi apenas a pontinha. E gostei! Lembrava-me vagamente do meu irmão dizer que a mamãe havia comprado algo parecido na porta do supermercado Alô Brasil.

Os pais foram chegando na saída e a galera se dispersou. Ficamos sozinhos. Seus dedos entrelaçados nos meus. Como era a minha parte direita, eu achava ainda mais estranho. Não existia celular e ninguém ligava a cobrar de orelhão. Nós aguardávamos resignados.

Começou um papo de férias, de aula, de ficarmos juntos e coisa e tal. Eu animei. Minha disposição renovou. Fui chegando junto, apesar das dificuldades inerentes à fratura, quando o pai dela chegou.

- O que é isso filha?

Ele não me conhecia. Olhou-me de cima em baixo. E por certo eu era um Dom Quixote de triste figura. Estava mais para um Rocinante. Pequeno, descabelado, roto e com um braço imobilizado.

- É o Joãozinho, o meu melhor amigo da sala.

- Ah, bom. Pensei que era um menino daí que você pediu para ficar te acompanhando enquanto eu não chegava. Cadê os outros?

- Os pais deles já vieram buscar.

- Quer vir com a gente, Joãozinho?

Senti uma entonação desafiadora e irônica naquele Joãozinho. Como se eu jamais fosse merecedor da companhia de sua bela filha e quanto mais sua amizade. Namoro? Nem pensar... Fiquei fulo de raiva, mais do que senti quando o Capeta tentou me abocanhar. Mas não disse nada. Saí-me com essa.

- A casa de vocês é longe da minha, eu vou de ônibus. E também fiquei de esperar o Zé.

Ela me olhou com ar de reprovação, mas respeitou a minha escolha. E antes que vocês me perguntem como essa coisa termina, ela mesmo resolveu:

- Olha, sua boca está suja de churros.

E aproximou-se bem junto a mim. E não obstante a presença autoritária do pai, beijou-me delicadamente no canto da boca, limpando o restinho de doce-de-leite que ficara. Imitando Capeta, estatelei.

Ela se foi no Maverick GT vermelho e preto que rosnava para mim. Não havia Zé algum. Ainda tive que pedir uma moedinhas para pagar o ônibus. Mas sobrou uma lição maravilhosa que guardei. E até hoje, mesmo que eu me arrebente inteiro: não tem Capeta que eu não monte, pai que eu não enfrente e churros que eu não coma, se o prêmio for um selinho suave da mulher amada.

JB Alencastro

JB Alencastro
Enviado por JB Alencastro em 22/01/2008
Código do texto: T827735
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