78 Corrida de São Silvestre

“78ª CORRIDA DE SÃO SILVESTRE”

Ciclos de sete anos. Em 1988 conheci a corrida rústica no Exército e inclusive fui chefe da delegação do quartel. Pesava no máximo 62 kg e voava baixo. Meus melhores tempos são desta época. Até os 10 km tudo abaixo da média de 4 minutos por quilômetro. Depois; em 1995, na passagem do ano, resolvi correr uma maratona. Escolhi a de Brasília. Saí do zero e completei-a em exatos 3h44’45”. Foram 4 meses e meio de intenso treinamento. Comecei com 70 quilos e na largada pesava 65.

Por que desfiar tanta coisa? Tudo tem um sentido, uma certa lógica. Então passaram mais 7 anos e aqui estou. Venci as duas corridas do Country Clube, participei dos 10 km dos Correios, da Mini-maratona de Goiânia e uma prova particular até a cidade de Trindade. No exato dia 15/11/2002 declarei: vou correr a São Silvestre!

Aí sim, começa a saga. Correr 15 km não é tão difícil. O ritmo pode ser dosado, diferente dos 5000 mts ou da dezena, que é sempre em alta velocidade... Durante todo o ano de 2002 eu corri. Sem tréguas. Aliás, apenas os 21 dias do Alasca. Mas isso já é outra história. Sentia-me bem e pedi um treino específico.

O técnico me brindou com 6 semanas de sofrimento. Divido-as entre a rebeldia de 30 dias e a concentração e medo das duas semanas finais. Saí de um treino filé de 3-4 vezes por semana que eu dominava perfeitamente, para a tortura chinesa de 5-6 dias semanais. Antes corria uma média de 12 a 13 mil metros e cumpria a missão em uma hora. Mudou para 18 km e hora e meia. Nada mal, né?

No começo tudo é novidade. Dores na panturrilha, taquicardia, perda de peso. Apesar da fome canina. Passou a primeira semana e a coisa piorou. Abandonei todas as outras atividades físicas. No fim-de-semana, fiz massagem. Lanchando bem, café da manhã reforçado e só sumindo. Beleza. Quanto mais leve, melhor.

Aproveitei para viajar para Campinas-SP levando a família. Todo atleta possui sua torcida particular, que o reverencia e incondicionalmente aposta que você será o vencedor. Minha dileta esposa sabe que darei o máximo de mim, já os meus filhos acreditam piamente que irei correr lado-a-lado com os quenianos. O meio termo será encontrado nas pistas, claro. Enquanto isso; dei uns tiros legais em Campinas, muita subida. Acho que tenho que me acostumar com os aclives.

Nesta semana que antecede a prova tudo pode acontecer. Tosse, gripe, diarréia e noites sem sono. Mas desistir, nunca! O que mais incomoda é que você está na ponta dos cascos e tem que cumprir à risca os treinos determinados. Dúvida atroz: - Faço literalmente o que me foi passado ou dou uma puxadinha à mais? Meu passado militar me obriga a ser fiel a planilha. Mas fica a nítida impressão de que você está sobrando ou que algo está faltando.

Chegamos em São Paulo-SP. Alimentação adequada, dentro do possível. Vou buscar o meu kit. Aí começo a tomar conhecimento da grandeza da prova. São milhares de pessoas ali. Cartazes nas imediações da Avenida Paulista, anunciando o horário de seu fechamento para o dia “D”. Muitas pessoas buscando o chip de cronometragem junto com a camiseta e o número de inscrição. Sinto-me importante. Sou um deles. Mil tipos de tênis em oferta, camisetas. Comércio paralelo do esporte. Ah, um teste de corrida de uma grande fábrica. Com direito a impressão plantar e diagnóstico da passada. Legal.

Faltam dois dias e eu corro metade do percurso. São cinco da tarde e o sol arde. Há uma semana a média de calor em São Paulo ultrapassa os trinta graus. E o céu é bem claro. Acostumado a treinar pela manhã ou a noite, sinto a diferença do horário, mas não da temperatura. Goiânia é quente também e seco. Aqui é úmido. Deleite descer a rua da Consolação. Rapidamente um anônimo corredor do Rio de Janeiro junta-se a mim e pergunta qual será a minha média do treino e quanto irei percorrer. - São 5minutos por quilômetro e uns 8 de trajeto, até o memorial da América do Sul, respondo. Ele vem junto.

Na véspera, era para completar os 7 km restantes, mas não deu. Meu filho vomitou a noite passada inteira e agora está bem. Mas a menina parece estar meio enjoadinha. Dormi mal. Mas tenho um dia para recuperar. Vou descansar. Entre comer bem e dormir mal, prefiro inverter as opções. Sempre o repouso é mais importante do que a alimentação. E apesar de tudo eu comi legal.

Chegamos ao último dia do ano. O primo Eduardo passa um relatório completo da prova. Meu companheiro Fernando ouve atentamente. Sinto que ele ficou impressionado com algumas palavras nada animadoras do primão. Mas como o mesmo já participou de 16 edições da prova, eu o escutei atentamente. Importantíssimo ouvir de quem já fez e passou pela mesma experiência tantas vezes. O Willians Santos me presenteia com um texto sublime de sua corrida. Fico encantado.

O almoço de massas tradicional. E ingerindo muita, muita água mesmo. Nada pode me impedir agora de chegar na Avenida Paulista e fazer uma boa prova. Estou confiante o que é –além do treino- o principal passo para um corredor.

Fernando irá acomodar-se no final da fila, apesar de sua esposa correr mais cedo. Ele irá se desgastar com o sol causticante e o acúmulo humano. Temendo o risco de ser atropelado e pisoteado, ele sai atrás. Seria legal se corrêssemos juntos, já que em um teste de 12 km praticamente o fizemos lado-a-lado. E no sprint final ele me passou. Eu vou chegar alguns minutos antes e analisar os fatos. Ou fico na turma do fundão ou salto a grade e arrisco uma largada maluca e veloz.

Chega o grande momento da largada, meu batimento cardíaco se eleva naturalmente. Contrariando as previsões, fico no terço proximal da turba irrequieta. O alto-falante pede calma e anuncia a saída. Neste exato instante ainda vejo centenas de corredores agachados e urinando, sem a menor cerimônia. Porém, não consigo imitá-los.

Demoro uns dois minutos para simplesmente me movimentar, o cheiro de suor é intenso e o de uréia também. Ultrapasso a faixa de largada com exatos 5 minutos do tiro inicial. O tapete está dobrado, será que o chip será registrado? Não consigo correr. Caminho exasperado , ziguezagueando entre a massa impenetrável. Eu sabia que seria assim, mas não imaginava tanto.

Corro lentamente e meu coração está em 140, muito pouco. Desço a Consolação desviando o tempo todo. Tento aumentar a passada, encaixar o quadril. Tudo que me foi ensinado e exaustivamente treinado durante um ano não acontece. Estou ficando puto! Mas então começo a ouvir gritos de incentivo. Percebo claramente que os dois lados da pista estão tomados de espectadores que torcem para todos. Fico feliz e sorrio pela primeira vez, deixando para trás o nervosismo.

Acredito que completei o primeiro quilômetro em mais de 6 minutos, muito lento para os meus padrões e excelente pela situação de corrida. Até alcançar o Minhocão meu peito está a 150, melhorando. Ali já é o 5º quilômetro e eu sonhava em passar com exatos vinte minutos. Não deu. Mas a sensação de ver o elevado tremendo e você passando centenas de pessoas a cada minutos é entusiástico.

Bebo a água que me é oferecida, hidratar é imprescindível. Em todos os postos eu o fiz. Não arrependi. Valeu para o final. A rua fica empoçada com tanto volume de copos. O spray borrifado é muito melhor do que o péssimo chuveiro que te ensopa e atrapalha. Refresca e reconstitui.

Assim que termino esta fase estamos com 160 de ritmo cardíaco e subindo. Percorro uma reta e depois uma subida suave. Agora sim alcanço os sonhados 170 bcm. E começo verdadeiramente a correr. É o oitavo quilômetro. A média que começou com 6/1 , baixou para 5/1 e depois manteve em 4:30 e 4:15 agora é os tão almejados 4/1. Maravilha.

A paisagem humana se modifica. Muitos estão esbaforidos pelo esforço, alguns andam. Vejo uniformes conhecidos que me deixaram para trás, no momento do turbilhão inicial. Poucos correm no meu ritmo. Flutuo entre os demais. Sou forte. Minhas pernas estão inchadas e leves ao mesmo tempo. Ninguém me ultrapassa. E daqui a pouco alcançarei o Viaduto do Chá e depois a famigerada Alameda Brigadeiro Luiz Antônio. Estou sólido.

Nestes momentos que antecedem o desafio final penso nos meus filhos. Escutei 23 vezes: “ -Vai papai, corre”. Em todas eu olhei, mesmo sabendo que dificilmente os veria ali. É que quando estamos em uma situação limite, alcançando um objetivo tão almejado, sempre lembramos dos mais caros. Dos amados. Daqueles que muito significam. Obviamente que Margareth está inclusa. Misto de companheira e cúmplice. Talvez somente ela saiba o que significa para mim estar ali. E o sacrifício feito para tal.

Vem na memória todo o time de pólo-aquático, em especial o Theo. O Bruno, meu parceiro de tantas pedaladas, o Fernando Costa. E várias outras pessoas. Engraçado, um sujeito gritou : “ Corre, argentino veado!” Respondi que sou brasileiro e na hora ouvi a maior gozação com ele. Como não lembrar dos verdadeiros amigos que adoram te xingar?

Estou sobrando, mas levemente tenso. O tempo deixou de ser algo importante, quero agora terminar bem a prova. Subo facilmente o viaduto do Chá, são uns dois mil metros. Importante citar que a prova é praticamente metade descida e metade subida, nesta ordem. Muita gente não dosa e se estrepa quando chega no ponto que irei descrever agora.

Em Goiânia, no estádio Serra Dourada, existe uma subida de 400mts para chegar na bilheteria de venda dos ingressos. Muito íngreme. Sempre tenho taquicardia quando passo por lá. E a percorro velozmente, puxando meus filhos. Só pra agitar. Quem dera eu estivesse lá, neste momento! Multiplique esta rampa por 5, aí podemos compreender o que é a Brigadeiro Luiz Antônio. Fim de prova extenuante. São 2000 mts de real suplício.

E eu –animadíssimo- acreditando estar super; entro no pau. Ou seja, começo forte a escalada. O povo correndo ao meu lado parece estar em câmara lenta. Nunca em minha vida toda ultrapassei tanta gente junta em tão pouco tempo. Delírio. Mas dura pouco. Faltando menos de 500mts eu faço a pergunta fatal: “Quanto falta pra acabar essa porra?” Não me agüentando mais eu simplesmente, acelero. Dentro do raciocínio: fudido, fudido e meio estou, procuro atenuar o tempo do meu extremo sofrimento. Deu certo.

Pensei no Fernando me alcançando, ou eu chegando perto dele. Imaginei a caibra. E a humilhação mortal: andar. Nada disso ocorreu. Ciente de que estava fazendo o melhor de mim, entrei garboso na Avenida Paulista. Os dois derradeiros minutos finais são indescritíveis. Aumentando a passada, alongando ao máximo, elevando a cabeça, fui reto.

O povo gritava, milhares de pessoas. Deixei para trás uma multidão de 13.500 corredores e 1.500 cruzaram a fita primeiro do que eu. Nada disso importa. Cheguei. Arrepiando sem parar. Vontade de chorar. Trotando. Suado. Engasgado. Feliz.

Gritei alto como sempre faço. Continuei caminhando. Retirei o chip. Aliás, um gentil funcionário o fez para mim. Organização da prova, muito boa. Troquei o aparelhinho eletrônico pela sonhada medalha, pesada, linda. Não ainda acreditando em tudo que aconteceu vou alongando.

Pela primeira vez olho no cronômetro que registra 1h17’46”. É o tempo da largada e chegada. Confiro o exato instante que passei pelo arco em frente do MASP. Cravados 1h12’35” , tempo oficial da prova. Satisfeito com o resultado, pois a corrida é totalmente atípica e difícil. Pelo calor, multidão lenta, subidas e descidas e final cruel.

Mais uma vez agradeço a Deus pela oportunidade de simplesmente estar vivo e com saúde. Meus pais e amigos que sempre acreditaram em mim. Ao técnico que me agüenta com infindáveis perguntas e questionamentos. E em especial à minha família, mulher e filhos; que além de acreditarem, torcem incondicionalmente para o João Baptista de Alencastro. Humilde atleta e orgulhoso homem de seus feitos e realizações.

JB Alencastro

JB Alencastro
Enviado por JB Alencastro em 22/01/2008
Código do texto: T827734
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