O Distraido

Naquele dia ele acordou tarde, o despertador digital do celular não havia tocado. Bateria descarregada. Vagarosamente abriu as cortinas da janela do quarto e o sol escaldante do verão de Porto Velho, cidade amazônida do norte do Brasil, afugentou a penumbra reinante no interior do recinto simplório no qual se vislumbrava na quina da parede uma cama de solteiro ornada com uma colcha de retalhos multicoloridos. Acima do catre, pregada à parede, uma cruz confeccionada de folha de palmeira, lembrança da última procissão de Corpus Christi. À frente da cama um guarda-roupa de duas portas, sem uma das portas. Em cima do tapete, ao pé da cama, um par de sandálias tipo havaianas. Debaixo da cama, os tênis velhos de guerra com um par de meias um tanto quanto sujas, pedindo máquina de lavar roupa com urgência.

Preguiçosamente o rapaz abriu os braços, bocejou, pegou a toalha de banho jogada em cima de uma cadeira de plástico, abriu a porta do quarto, seguiu pelo corredor estreito da República de Solteiros e cumprimentou a velha e quase senil senhora encarregada da limpeza. “Bom dia Dona Eufrazina!”. “Bom dia, meu filho! Tu num estás atrasado para o trabalho? Você é sempre um dos primeiros a acordar e hoje acordou tão tarde”. “Não senhora, só começo a trabalhar às nove. É cedo ainda. Acho que não é nem oito. Talvez sete e meia”. “Oxente! Então tem alguma coisa muito errada, pois já é nove e meia”. “O quê? Nove e meia? Mas como?”. Voltou correndo para o quarto, pegou o celular e olhou o visor. Estava apagado. Mesmo assim não se conformou. Sempre acordava uma hora, às vezes uma hora e meia antes. Dava tempo suficiente para um banho demorado. Tomar café no boteco da esquina. Azarar a jeitosa da garçonete. A caminho do ponto de ônibus dar uma olhada rápida nas manchetes dos jornais na Banca de Jornal do Seu Joça. Quem sabe futuro sogro, afinal a filha do velho merecia ser Porta Bandeira da Escola de Samba campeã do carnaval passado. “O que será que tinha acontecido para tamanho atraso? Também com a enxurrada de serviço que tinha aparecido todos os dias. Não via a hora de chegar o final de semana para um descanso merecido. Estava só o bagaço. Só a casca e os grilos cantando dentro”. “Não tinha jeito, o caso era deixar o banho prá lá, escovar os dentes e nem pensar no café”.

Chegou esbaforido ao Ponto de Ônibus da Rua Raimundo Cantuária, ali, pertinho da Rua Quatro. Era quase dez horas. O coletivo das dez milagrosamente estava no horário. Com o estômago roncando de fome matinal embarcou no “Cata Corno”. Cumprimentou o cobrador pensando na criatividade dos gozadores de plantão ao apelidarem o coletivo com uma alcunha tão chula. Sentou-se estranhando os bancos quase vazios. Imaginou que talvez fosse o adiantado da hora. Não queria nem imaginar a bronca do chefe.

Olhando pela janela se perguntou por que as pessoas insistiam em trafegar de bicicleta fora da ciclovia. Era ciclista indo e vindo na contramão. A Rua Raimundo Cantuária descia no sentido Bairro Agenor de Carvalho para o Centro da cidade. A prefeitura havia demarcado com tartaruguinhas amarelas um espaço de quase dois metros do lado esquerdo da rua para uso exclusivo dos ciclistas, porém, os ditos cujos insistiam em trafegar pelo lado direito da rua, reservado para veículos motorizados. Pondo em risco a própria vida e a integridade física de eventuais pedestres desavisados e imprudentes. Olhando ainda pela janela sorriu da imbecilidade dos motociclistas que insistiam em levar o capacete pendurado no cotovelo quando o certo seria colocá-los na cabeça. “Acho que esses caras têm tanto carinho pelo capacete deles que os levam para passear pendurados no braço. É a única explicação racional para um comportamento tão esdrúxulo”.

Afinal chegou ao ponto de parada. Desceu e caminhou para o prédio da repartiçõ onde trabalhava. Estranhou o saguão vazio, nem o Seu Zezinho, porteiro antigo do prédio estava no costumeiro tamborete de madeira com tampo lustrado de tantos anos de uso. Somente o vigilante estava a postos. “Bom dia! O prédio pegou fogo? Deu terremoto? O que foi que houve que eu não estou vendo ninguém circulando?”. Perguntou ao sonolento vigia. “Eu num tô sabendo de fogo ou tremor de terra não. Eu só sei que num tem ninguém trabalhando porque hoje é sábado. O senhor veio fazer hora extra, foi?”.

“Ah! Dona Eufrazina....!!!! Porque que a senhora perguntou se eu estava atrasado”.