A ARTE DE FINGIR UM SORRISO
A alegria é um sentimento estranho, ela se esconde, ela se mostra, difícil de entender o movimento que faz dentro da gente, já tristeza é tão discreta, ela se move para dentro, fica escondida, muita gente precisa fingir um sorriso
Marta estava bem na nossa frente, vestida de preto , dançando, meio longe do grupo, magra, olhos escondido por um ray ban, cabelos lisos bem preto, uma mistura de sensualidade e inocência.
A gente era uma turma de fracassados, desmotivados e loucos, eu o médico desatualizado vendido para privatização da saúde, Laura uma funcionária de multinacional, Ronald é um bancário que pinta o cabelo de ruivo, Claudionor, um artista plástico que não se acha talentoso, por isso não expõe nem vende a suas obras.
-Ela mora no carro? - perguntou Laura, que se descobriu lésbica depois de um casamento abusivo, obesa estrutural, baixa e risonha.
-Cacete isso é que é viver – disse Ronald, que dividia um apartamento com a ex mulher, ela trazia um namorado novo cada noite e apresentava pra ele, falava das peripécias deles como amantes e de como Ronald era fraco quando o assunto era trepada, amasso, que a pegada sempre foi uma tristeza, ele concordava, escovava o dente , ia dormir e colocava fone de ouvido com a seleção de música da Beyoncé .
-Ela vive de quê? - perguntei.
-Estudante, daquelas eternas, sociologia , psicologia, etc, está no ano sabático– disse Claudionor.
Marta chegou em um anoitecer torto, cinzento, quando o humor da maioria não estava bom , estacionou o carro na frente do bar do Zeca e disse:
-E ai cambada? – do nada ela pegou meu copo e bebeu a cerveja de uma vez só, naquele dia eu estava deprimido com uma coisa do trabalho e dei uma gargalhada que lavou a alma.
Depois ela disse que observou a gente na semana anterior, o grupo tipo heterogenio, que ela adorava gente esquisita que bebia junto.
-Que a gente tem de especial? - perguntou Laura e acrescentou – Um médico final de carreira, um chifrudo de carteira assinada, um escultor de arames e uma lésbica que só transou até agora com homens?
-Isso é lindo - disse Marta, que nunca tirava o ray ban, seu rosto fino inteiramente angulado era perfeito, perincipalmente quando sorria, ela sorria o tempo todo.
Uma vez depois de uma noitada Laura perguntou:
-Por que a gente?
-Tá brincando? Olha pra vocês? São uma tropa , olha o Ronald, ele não tem um mínimo de preconceito, deixa a mulher dele transar com outros bem na cara dele e fica ouvindo a parada sexy ao som de Beyoncé– ela olhou pra mim e disse - o médico, fica ai sentado reclamando da vida porque confiou no sistema e teve que sair do lugar que adorava trabalhar, e você, tem medo de transar com mulheres e se declara lésbica não praticante.
-E eu ? - perguntou Claudionor.
-Você é um artista.
Foi assim que fizemos amizade, bebianos no final da tarde até o preço do chopp subir, depois cada um ia pra casa, até Marta aparecer e mudar tudo.
Um dia ela convidou a gente para um passeio na praia, plena madrugada, sensação maravilhosa de quem , mesmo morando no Rio, nunca tinha visto o mar as três da manhã.
Não consegui dormir, peguei uma cerveja no bar e ao voltar para praia notei a Marta sozinha na beirada, deitada com olhos abertos para o nascer do sol, fui ao encontro dela percebi que chorava.
-O que foi? - perguntei e ela se austou um pouco.
-Tem gente que parece triste por fora e é alegre por dentro, olha o Ronald, olha você, e gente que é alegre por fora e um breu por dentro – ela limpou as lagrimas, colocou os óculos.
Um ano depois a nossa rotina não mudava, encontro no bar ao pôr do sol.
Marta estava dançando, no mesmo lugar em frente as cadeiras do bar do Zeca, ela estava bebendo mais que o normal, até cair, depois tinha crises de choro e riso, nesse dia , ainda sóbria, ela parou de dançar , tirou os óculos e disse:
-Está tudo errado, tudo – ela deu uma gargalhada, depois olhou para Laura e disse – Laura você não é gay, pelo amor de Deus! Você só é uma mulher que o marido fez questão de acabar com a autoestima , Ronald, meu filho, você canta Beyoncé, você é gay, você está de olho nos caras que a tua mulher transa, se liga? Claudionor, suas esculturas são perfeitas – ela encostou a mão em mim – você é médico, o que quer mais dessa vida? Tem um milhão de maneiras de ajudar as pessoas.
A vida é uma festa, disse Marta em uma quarta feira de cinzas bem, as duas da tarde Claudionor a encontrou foi levar doce de banana pra ela no carro e a viu morta, ele disse : se matou com comprimidos para dormir, liguei para o número da mãe que estava no celular dela, Claudionor falava entre soluços, como era possível alguém tão linda e tão alegre sair da vida daquele jeito horrível ?
Acho que Marta fingia sorrir, como o poeta diz: fingir a dor que deveras sente.