Como uma raposa

Maria das Dores entrou desesperada na fazenda de seu noivo, Diogo da Veiga. Apesar das enormes dimensões do crime, nada parecia vandalizado. Isso só indicava a conivência do proprietário com aquele que roubara os escravos do local. Boatos diziam que nem acionaria a polícia temendo retaliação do bandido.

 

Desde que namoravam às escondidas, a mulher exigia a libertação dos escravizados quando assumisse a fazenda. Sabia ser pedir demais ao filho de Alexandre da Veiga, o maior latifundiário da freguesia de Campinas. Apesar disso, ele possuía um senso de justiça raro nos privilegiados e jurou realizar a tarefa. Não para conquistar a donzela amada, mas porque era o certo. Detalhes assim que apaixonaram Maria das Dores.

 

Todavia, ele ainda não o fizera. O que ocorrera com os ideais de Diogo? Mudaram quando herdou a propriedade? A moça, enquanto filha de uma escrava de ganho que comprou sua alforria, jamais se uniria a um reprodutor dos abusos que a assombravam.

 

Por isso, cobraria uma postura daquele covarde. Aquela gente sofria sabe-se lá na mão de quem! Ele permitiria novos eventos? E se quisessem violentar sua companheira? Ele não era um frouxo antes de ir estudar em Coimbra. Maria das Dores se apaixonara por um homem corajoso, ousado e que jamais se calaria diante de uma injustiça. Aconteceu algo em Portugal ou a morte do pai, motivo pelo qual retornou à colônia, teria sido a culpada?

 

Diante daquela metamorfose, a mulher sentia-se confusa. E se o Diogo que saiu da freguesia de Campinas não mais existisse? Ela se arrependeria se casasse?

 

– Tu não farás nada quanto ao assalto? Agora todos estão perdidos! – Ela chorava ao imaginar o destino dos escravizados. – E se, em vez deles, houvessem roubado a mim? Também ficarias inerte? Lá em cima, teu pai deve estar humilhado. – Ela disse em tom de censura.

 

– Sabemos bem que ele não está lá em cima. Fico surpreso que o defendas. – Seu olhar não era o de um covarde.

 

– Não fales assim do teu progenitor! – A mulher deu um tapa no rosto do noivo.

 

– Estás certa de que isso foi porque não cumpri o quinto mandamento de Deus? – Foi irônico.

 

A noiva ficou vermelha de raiva devido ao tom empregado. O tapa realmente não era por Alexandre da Veiga, mas pelos escravizados sequestrados. O deboche provava que ele lembrava muito bem da promessa e não a cumprira deliberadamente. Estava provado: Diogo não era mais o mesmo homem.

 

Ninguém via com bons olhos o herdeiro da Veiga cortejando uma preta. Tentaram empurrar filhas de tantos outros fazendeiros, porém o coração do jovem já tinha dona. A proibição incondicional veio em seguida. Porém, após o retorno de Coimbra devido ao falecimento do pai, Diogo assumiu publicamente o noivado com Maria das Dores. A mulher não podia negar que era satisfatório constatar a inveja alheia quando estava com seu prometido.

 

Todavia, aquele cavalheiro disposto a enfrentar Deus e o mundo para ficar com ela acabara de virar a casaca. Ela não permitiria tamanho desrespeito. Para tais circunstâncias, valia a máxima: antes só do que mal acompanhada. Maldita metrópole, que lhe roubara o homem da sua vida. O que raios tinha acontecido?

 

Com pesar, as memórias de seus momentos juntos assumiram os pensamentos da moça. Ela ansiava por novas recordações, mas tudo indicava que seria obrigada a se contentar com aquelas poucas.

 

 

5 anos antes

 

A cesta de pães que Maria das Dores carregava já estava vazia. Não era surpreendente, já que todos naquela família estavam muito magros. Ela sempre levava um lanche, pois sabia que de nada adiantaria seu esforço de alfabetização em quem passava fome. Estava satisfeita com seu progresso, pois sentia que logo o filho caçula estaria dominando a leitura. Então poderia partir para outra família.

 

A freguesia de Campinas era pequena, porém a moça acreditava no potencial do local. Imaginava um futuro em que seriam uma metrópole regional, referência em produção de conhecimento. Em nome disso, trabalhava intensamente levando alfabetização à população. Seria o primeiro passo em direção à grandiosidade. Ai, como gostaria de ter mais posses... Assim fundaria uma escola e realmente teria ações significativas.

 

Enquanto planejava seus próximos passos, percebeu que seus pés não seriam mais capazes de dá-los. Pois, de repente, estavam no ar e uma forte dor invadiu suas costas quando caiu de bunda. O homem responsável pelo golpe apareceu rapidinho. Aproximava-se com seu sorriso sacana. Antes que ela pudesse se movimentar, já segurava seus pulsos e prendia suas pernas nas dela.

 

Maria das Dores previa o que viria a seguir. Sem saber o que fazer para impedir, fechou os olhos com força e rezou para a santa cujo o nome carregava. Apesar da devoção, sabia que não adiantaria. Não seria a primeira e nem a última mulher preta a ser forçada. Por essa sina passara sua mãe, só esperava que sua futura filha escapasse. Aliás, esperava que sua futura filha não o tivesse como pai.

 

Felizmente, suas previsões estavam erradas, pois aconteceu sim um milagre.

 

– Larga a dama e enfrenta alguém em pé de igualdade. – Uma voz masculina ressoou e gotas de sangue pingaram em seu vestido. Eram do agressor, que tinha uma lâmina fincada no pescoço.

 

O sorriso sacana do abusador transfigurou-se em arrogância e ambos começaram a duelar pela honra de Maria das Dores. A mulher não prestou muita atenção, porque estava diante de um dilema: fugia enquanto havia tempo ou ficava para agradecer seu salvador? Nem deu tempo de decidir, pois em um minuto seu salvador já vencera o duelo. Ela arregalou os olhos diante de um desempenho tão grandioso.

 

– Diogo, às ordens. – O homem que a salvara depositou um beijou no dorso de sua mão.

 

– Maria das Dores. – Ela respondeu sorrindo, enquanto procurava seus pertences que caíram no chão ao ser empurrada.

 

– Procurando isso? – Ele mostrou uma edição de Marília de Dirceu.

 

– Exatamente. Obrigada.

 

– O arcadismo é sedutor. Um dia ainda quero viver o sonho do inutilia truncat e do aurea mediocritas.

 

– O livro exprime essas filosofias de forma mesmo encantadora.

 

– Marília foi uma boa musa para Dirceu e tu pareces ser boa nisso também. – Ele disse galanteador e a jovem corou. – Adeus.

 

Maria das Dores pensava que nunca mais encontraria aquele rapaz. Todavia, estava redondamente enganada.

 

 

De volta ao presente

 

Após emergirem em sua mente, chegou a hora das lembranças se esvaírem de seu corpo. Isso foi feito por meio de dolorosas lágrimas, que dificultaram sua fala:

 

– Já que não quiseste cumprir tua palavra, vou embora. Não me procures depois. – Sem hesitar, ela saiu.

 

Assim que a ex-noiva deu um passo, um grito em pânico de Diogo ecoou no recinto. A mulher sentiu o alívio tomar conta: apesar de tudo, ele ainda a amava. Um sorriso brotou, mas ela o ocultou ao virar-se. Estava brava e exigiria uma retratação extraordinária em troca da manutenção do noivado.

 

– Eu sou o ladrão de escravos. Se te enganei, é porque meu plano funciona. – O homem revelou hesitante. – Desse modo darei liberdade ao máximo de escravizados em Campinas. É um absurdo que sejam a maioria da população! Comecei pelos meus, para afastar suspeitas, e os levei a um quilombo. O próximo alvo do assalto será a fazenda dos Carvalho. Em breve, venderei minha fazenda. Assim, teremos o montante necessário para realizar o fugere urbem e irmos ao nosso locus amoenus.

 

Aquela reviravolta foi demais para Maria das Dores. Ela se desequilibrou pela surpresa e deu um passo para trás. Apesar disso, o espanto passou rapidamente. Afinal, essa era a atitude esperada dele. Lá estava o homem pelo qual se apaixonara: altruísta, esperto e ousado. Ansiava para que pudessem realizar juntos aquilo que Dirceu não pôde com Marília.

 

– Não fiques assim. – Diogo já estava tranquilo novamente. – Dei minha palavra. – Ele apontou para uma gruta através da janela. – Escondi um cavalo e disfarces pretos ali para o ladrão de escravos não ser reconhecido. Há um traje para ti. Vista-te que te mostrarei o quilombo, afinal, muitos são analfabetos e anseiam pela melhor professora da freguesia de Campinas. – O homem finalizou animado.

 

A mulher se empolgou. Sabia que, a partir daquele momento, se tornaria cúmplice de um fora da lei, porém estava disposta a se arriscar por essa causa. Seguiria o carpe diem, ora. Talvez esse fosse o início da fundação da sua escola. Como a vida era… jamais imaginaria que sua primeira turma grande seria de quilombolas.

 

Ela se permitiu sonhar com um futuro em que Campinas fosse um símbolo educacional para a colônia. Talvez possuísse até uma universidade quando o Brasil se libertasse das exigências de Portugal. À chegada desse dia, Maria das Dores diria orgulhosa que fizera parte da construção de tal legado de onde quer que sua alma estivesse.