ÔÔÔ...SEGREDO
Ô ô ô... SEGREDO
"cada um empresta
às coisas o ouro
que possui. [...]
Edimilson de Almeida Pereira"
A datação ora presente fazia-se a favor vontade de Bruno, ao seu léu. O tempo conspirava. Trazia a um mesmo calendário as lembranças das várias poucas vezes que visitou a casa de seus avós. Chegando à rua, a correria de queria antecipar aos irmãos a chegada à maçaneta de cerâmica azul-branca da porta. Encontrando o avô no caminho o passeio na carroça era inevitável como tomar a benção. O centro de gravidade passava a ser outro, se, no quintal, longe do chão, Bruno e seus irmãos alternassem-se no lombo do quadrúpede, arriado de sua sela cela.
- Que ginástica deviam fazer os cavalos para ver o caminho, com aquele tapa-olho de couro obrigatório! Admiravam-se os garotos. O avô chamava seu burro às ordens, ao controle, às paradas, ao escovar dos pelos os carrapichos, os carrapatos, ao pregar a martelo as ferraduras, pelo nome de... Segredo. O cheiro de milho ruminado e água de poço, a saliva de Segredo e o cheiro típico do ambiente dos eqüinos dava ao local a mesma aura de uma manjedoura.
Uma das brincadeiras sérias era alimentar e observar o galopante ser em seu estábulo. Bruno, criança que disputava sua história com a dos livros onde burros loquazes sabiam de tudo, experimentava tirar a prova, tirar a dúvida e ratificar por completo sua ascendência, dentre os irmãos, na preferência do avô. Perguntava, em secreto, a Segredo:
- Quem vovozinho mais ama?
Outra brincadeira fazia o avô, sério, à mesa. Perguntava aleatoriamente a um dos irmãos se ele queria comer mais. Das duas respostas possíveis, sim ou não, seguia-se respectivamente a colocar mais arroz ou a puxar o prato, retirando-o do alcance. Todos riam da história verídica e engraçada de Serafim Ponte Grande, um tio, quando viera pedir a mão da tia em casamento. Para criar coragem passou antes no bar e “deu um tapa no beiço.”
Em uma féria daquelas um ato mágico iria hipnotizar o olhar de Bruno.Crianças vêem num ângulo de quinze graus acima da linha horizonte. Sob o sol da tarde da frente da rua, antes de sair a um compromisso infalível, seu avô sacou do colete, que ora vestia, um relógio de bolso. O herói destampou, esticou o olhar. Aproou o sol, como a comparar o fuso. Conferiu, talvez, o período da órbita do astro com o ciclo de um rastro de elétrons em um átomo.
Estirou ao máximo, com os dedos, através de um parafuso na lateral do visor, a corda de mola. Fechou ainda duvidoso. Abriu novamente, satisfeito com a tensão empregada mais o fato de estar dentro horário agendado. Reconfortou-o no bolso. Bruno, na varanda encerada, desfez o olhar como se não observasse as manobras. O pai da sua mãe colocou a mão em outro bolso, da calça, de onde abraçou o que havia ganhado na carruagem do dia, estendeu a Bruno uma cédula e partiu.
- Aonde iria com pricisão, chapéu de feltro e tala, o seu avô? Perguntou-se o menino.
Algo, porém, não ia bem naquele império. Veio a fábrica e a com ela a proibição, pelos poderes constituídos, da utilização de carroças para se distribuir o leite-nosso de cada dia pelas ruas da cidade. Havia chegado a pasteurização e a plastificação das latas de litro. Nem ferver era preciso mais, diziam!
- Leitico! Uma colher de farinha virou angu!
Correram léguas, antes de seguir suas filhas, Simão, o avô, junto com seu Segredo, as ruas de Fé, com suas casas a frete. Levavam areia, traziam camas, os dois teimosos. As tias de Bruno já haviam se antecipado à recomposição dos braços migrados e exigidos nas firmas de outra cidade mais industrial. O tempo conspurcava. O avô de Bruno estava sendo demitido da sua profissão. Ao Quijote domava o moinho.
*
Antônio era amigo de academia de Bruno. Contemporâneo das escolhas de relógio nas lojas de Aparecida do Norte. No intervalo de uma aula versavam sobre apelidos que apareciam e eternizavam-se, como se a evolução do mundo fosse impossível de derreter um batismo. Antônio estava com seus colegas no interior do Ceará e, quando da chegada do tio de um deles de São Paulo, o sobrinho arvorou-se em dizer que o irmão de seu pai havia retornado com um relógio sem ponteiros. A gargalhada foi geral. Tanto foi a chacota que veio o apodo: Relógio Sem Ponteiro. Vinte anos depois Antônio retornou à beira do açude e lá estava o seu amigo, sacramentado, imortalizado pela descoberta do relógio digital a quartzo. Esta história faria Bruno rir bastante.
**
Bruno havia esquecido de onde vinha sua fixação por relógios de bolso. Não o atraia hora nenhuma, se postados lado a lado, o mais belos destes modernos, aos daqueles simples, de corda de mola e cordão de prata. Tinha exigência sobre se ter uma tampa que abrisse.
Quando seu pai dormitava no colo da sala, no sofá do filho, observava a cinta de aço no pulso, destes relógios com fecho de pressão. Tentava abri-la sem despertá-lo do sono. O desenho da fivela ficava impresso na pele. O tornar-se homem adotou para ele um destes, de uso no pulso, com corda automática pelo isocronismo do ato de andar, de mostrador com um fundo azul. Assim se fez, como uma barba por aparar. Passada a novidade usava a pulso. Aquilo não lhe agradava. Incomodava-lhe a circulação arterial presa. Desenvolveu mais tarde, para si, a tese da redundância de dois relógios no mesmo pulso, um atrasando o outro. Outra de suas queixas seria a decapitação em guilhotina dos pelos do braço.
Bruno quando menino fora arteiro. Levado pra burro. Teria sua curiosidade conduzido-o a quebrar o relógio de seu avô? Teria sido ele preterido por Cândido, o caçula, na escolha para morar uma temporada na casa dos avós? Algo ocorrera na casa de seus avós que o transformara em comedido demais. Perscrutaria, porém com ciência, desconfiado e, muitas vezes, isolado. Deixaria ele de palmilhar o fantástico, o surpreendente, o milagre? Não inventaria sequer poemas, este ato de fazer mágica com
as palavras? Pararia de desenhar leões?
A imagem que Bruno tinha dos psicólogos estava associada à hipnose onde a vítima era seduzida por um relógio de bolso balouçando nas suas ventas. A sugestão de uma presentificação faria-o demonstrar seu ovo de Colombo? Ajudá-lo-ia a encontrar sua ilha-continente perdida? Deste ponto retornava à recordação de um modelo de relógio de bolso que havia visto recentemente numa vitrina, com tampa, uma caravela em altos relevo e mar. Retornara ao shopping e não o encontrara mais, na estante... A seção terapêutica estagnava-se neste ponto. Não imaginava que as respostas apareceriam um dia, a galope.
***
Correram léguas os ponteiros do tempo de Bruno antes de reencontrar novamente, na rua, o seu avô. Estabelecido alferes, depois da academia, Bruno treinava seu ofício na cidade, Mó. No primeiro instante ocorrera um espanto recíproco. Paralisados eles ficaram, um ante o outro. Não programaram. Não acreditavam que um ângulo de esquina os separasse. Algo mudara. Fazia sol, mas já não havia o colete para o relógio de bolso. As cédulas tinham valor de moedas. Havia uma liteira cheia de papelões. Um não queria ser encontrado e o outro não queria encontrar, não naquele instante controverso. Entre as gruas um que teima, o pertinaz. Entre as ruas, sem sua ampulheta automática, o impertinente, flagrando o homem besta. Um cavaleiro sem armadura e um escudeiro sem amuleto. Um centurião sem fé e um cruzado sem sua crina. Depois do hiato a benção. Os compromissos estavam, entretanto, desalinhados, mas o caminho desfez-se até à quadra da casa.
Bruno, para conservar os costumes, perguntava-se:
Qual fim teria levado Segredo? Teria ele sido vendido a um carroceiro vil, que o obrigaria a cruzar pontes de madeira a poder de chicotadas, ignorando o seu instinto de segurança? Ainda se constroem mata-burros? Poderia ter sido ele um daqueles avistados de barriga aberta, no córrego de baixo, entre os urubus? Fora sacrificado com tiro de garruchas após ter o quadrúpede perdido esta sua característica, as quatro patas, primordial ao trabalho? Ficara cego de tanto revirar os olhos no tapa-olho a respirar o olor das éguas que relinchavam sobre sua sina estéril? Morrera no pasto picado por peçonha? Teria o burro denunciado o seu padrinho e dono, traindo a condição que exigia a confidência masculina, pronunciando um nome de mulher diferente do da avó dos meninos? Teria renegando o registro em batistério do seu
nome? Fugira para um livro de fábulas, para uma epopéia ibérica, andina, saárica, à procura do seu genitor, o pai-dos-burros?
Este mistério não foi desvendado nos monólogos de café, pelos neto e avô. Não sobrava tempo naqueles dias em Mó. Desvendou-se, sobre aquele dia de pricisão, relógio, tala e chapéu de feltro, que seu avô fora buscar na prefeitura da cidade uma autorização para trabalhar vendendo pipocas e maçãs do amor.
Permaneceu intacto um enigma, guardado a martelo e prego, entre os sons das quatro ferraduras a galope, na charrua da memória.
- Quem vovozinho mais ama?
O sábio Rocinante, alimentado na cocheira, um dia respondeu:
- Mariana!
Mariana era o nome da avó. Para quem nunca ouviu a voz de um burro, é algo como ligar o rádio sem sabê-lo no volume máximo, na hora em que uma voz de padre carrilha a uma santa negra uma prece:
- Consagro-vos a língua! Consagro-vos o entendimento!
Por isso Bruno correu branco, hister, louco com o susto, pela casa adentro. Escondeu-se no quarto das tias. Desde o momento de ser denunciado pelas suas palpitações aceleradas, até agora, ninguém acreditou nele. Nem os galãs em poses de folhetim que revestiam as paredes. São precisamente... vinte horas.
****
- Bem, Bruno, nosso tempo está encerrado por hoje. Na próxima seção
faremos uma tarefa com desenhos.
Adiantou-se a psicóloga.
*****
Publicado em Cadernos Negros 30,Quilombhoje, São Paulo, 2007
Ô ô ô... SEGREDO
"cada um empresta
às coisas o ouro
que possui. [...]
Edimilson de Almeida Pereira"
A datação ora presente fazia-se a favor vontade de Bruno, ao seu léu. O tempo conspirava. Trazia a um mesmo calendário as lembranças das várias poucas vezes que visitou a casa de seus avós. Chegando à rua, a correria de queria antecipar aos irmãos a chegada à maçaneta de cerâmica azul-branca da porta. Encontrando o avô no caminho o passeio na carroça era inevitável como tomar a benção. O centro de gravidade passava a ser outro, se, no quintal, longe do chão, Bruno e seus irmãos alternassem-se no lombo do quadrúpede, arriado de sua sela cela.
- Que ginástica deviam fazer os cavalos para ver o caminho, com aquele tapa-olho de couro obrigatório! Admiravam-se os garotos. O avô chamava seu burro às ordens, ao controle, às paradas, ao escovar dos pelos os carrapichos, os carrapatos, ao pregar a martelo as ferraduras, pelo nome de... Segredo. O cheiro de milho ruminado e água de poço, a saliva de Segredo e o cheiro típico do ambiente dos eqüinos dava ao local a mesma aura de uma manjedoura.
Uma das brincadeiras sérias era alimentar e observar o galopante ser em seu estábulo. Bruno, criança que disputava sua história com a dos livros onde burros loquazes sabiam de tudo, experimentava tirar a prova, tirar a dúvida e ratificar por completo sua ascendência, dentre os irmãos, na preferência do avô. Perguntava, em secreto, a Segredo:
- Quem vovozinho mais ama?
Outra brincadeira fazia o avô, sério, à mesa. Perguntava aleatoriamente a um dos irmãos se ele queria comer mais. Das duas respostas possíveis, sim ou não, seguia-se respectivamente a colocar mais arroz ou a puxar o prato, retirando-o do alcance. Todos riam da história verídica e engraçada de Serafim Ponte Grande, um tio, quando viera pedir a mão da tia em casamento. Para criar coragem passou antes no bar e “deu um tapa no beiço.”
Em uma féria daquelas um ato mágico iria hipnotizar o olhar de Bruno.Crianças vêem num ângulo de quinze graus acima da linha horizonte. Sob o sol da tarde da frente da rua, antes de sair a um compromisso infalível, seu avô sacou do colete, que ora vestia, um relógio de bolso. O herói destampou, esticou o olhar. Aproou o sol, como a comparar o fuso. Conferiu, talvez, o período da órbita do astro com o ciclo de um rastro de elétrons em um átomo.
Estirou ao máximo, com os dedos, através de um parafuso na lateral do visor, a corda de mola. Fechou ainda duvidoso. Abriu novamente, satisfeito com a tensão empregada mais o fato de estar dentro horário agendado. Reconfortou-o no bolso. Bruno, na varanda encerada, desfez o olhar como se não observasse as manobras. O pai da sua mãe colocou a mão em outro bolso, da calça, de onde abraçou o que havia ganhado na carruagem do dia, estendeu a Bruno uma cédula e partiu.
- Aonde iria com pricisão, chapéu de feltro e tala, o seu avô? Perguntou-se o menino.
Algo, porém, não ia bem naquele império. Veio a fábrica e a com ela a proibição, pelos poderes constituídos, da utilização de carroças para se distribuir o leite-nosso de cada dia pelas ruas da cidade. Havia chegado a pasteurização e a plastificação das latas de litro. Nem ferver era preciso mais, diziam!
- Leitico! Uma colher de farinha virou angu!
Correram léguas, antes de seguir suas filhas, Simão, o avô, junto com seu Segredo, as ruas de Fé, com suas casas a frete. Levavam areia, traziam camas, os dois teimosos. As tias de Bruno já haviam se antecipado à recomposição dos braços migrados e exigidos nas firmas de outra cidade mais industrial. O tempo conspurcava. O avô de Bruno estava sendo demitido da sua profissão. Ao Quijote domava o moinho.
*
Antônio era amigo de academia de Bruno. Contemporâneo das escolhas de relógio nas lojas de Aparecida do Norte. No intervalo de uma aula versavam sobre apelidos que apareciam e eternizavam-se, como se a evolução do mundo fosse impossível de derreter um batismo. Antônio estava com seus colegas no interior do Ceará e, quando da chegada do tio de um deles de São Paulo, o sobrinho arvorou-se em dizer que o irmão de seu pai havia retornado com um relógio sem ponteiros. A gargalhada foi geral. Tanto foi a chacota que veio o apodo: Relógio Sem Ponteiro. Vinte anos depois Antônio retornou à beira do açude e lá estava o seu amigo, sacramentado, imortalizado pela descoberta do relógio digital a quartzo. Esta história faria Bruno rir bastante.
**
Bruno havia esquecido de onde vinha sua fixação por relógios de bolso. Não o atraia hora nenhuma, se postados lado a lado, o mais belos destes modernos, aos daqueles simples, de corda de mola e cordão de prata. Tinha exigência sobre se ter uma tampa que abrisse.
Quando seu pai dormitava no colo da sala, no sofá do filho, observava a cinta de aço no pulso, destes relógios com fecho de pressão. Tentava abri-la sem despertá-lo do sono. O desenho da fivela ficava impresso na pele. O tornar-se homem adotou para ele um destes, de uso no pulso, com corda automática pelo isocronismo do ato de andar, de mostrador com um fundo azul. Assim se fez, como uma barba por aparar. Passada a novidade usava a pulso. Aquilo não lhe agradava. Incomodava-lhe a circulação arterial presa. Desenvolveu mais tarde, para si, a tese da redundância de dois relógios no mesmo pulso, um atrasando o outro. Outra de suas queixas seria a decapitação em guilhotina dos pelos do braço.
Bruno quando menino fora arteiro. Levado pra burro. Teria sua curiosidade conduzido-o a quebrar o relógio de seu avô? Teria sido ele preterido por Cândido, o caçula, na escolha para morar uma temporada na casa dos avós? Algo ocorrera na casa de seus avós que o transformara em comedido demais. Perscrutaria, porém com ciência, desconfiado e, muitas vezes, isolado. Deixaria ele de palmilhar o fantástico, o surpreendente, o milagre? Não inventaria sequer poemas, este ato de fazer mágica com
as palavras? Pararia de desenhar leões?
A imagem que Bruno tinha dos psicólogos estava associada à hipnose onde a vítima era seduzida por um relógio de bolso balouçando nas suas ventas. A sugestão de uma presentificação faria-o demonstrar seu ovo de Colombo? Ajudá-lo-ia a encontrar sua ilha-continente perdida? Deste ponto retornava à recordação de um modelo de relógio de bolso que havia visto recentemente numa vitrina, com tampa, uma caravela em altos relevo e mar. Retornara ao shopping e não o encontrara mais, na estante... A seção terapêutica estagnava-se neste ponto. Não imaginava que as respostas apareceriam um dia, a galope.
***
Correram léguas os ponteiros do tempo de Bruno antes de reencontrar novamente, na rua, o seu avô. Estabelecido alferes, depois da academia, Bruno treinava seu ofício na cidade, Mó. No primeiro instante ocorrera um espanto recíproco. Paralisados eles ficaram, um ante o outro. Não programaram. Não acreditavam que um ângulo de esquina os separasse. Algo mudara. Fazia sol, mas já não havia o colete para o relógio de bolso. As cédulas tinham valor de moedas. Havia uma liteira cheia de papelões. Um não queria ser encontrado e o outro não queria encontrar, não naquele instante controverso. Entre as gruas um que teima, o pertinaz. Entre as ruas, sem sua ampulheta automática, o impertinente, flagrando o homem besta. Um cavaleiro sem armadura e um escudeiro sem amuleto. Um centurião sem fé e um cruzado sem sua crina. Depois do hiato a benção. Os compromissos estavam, entretanto, desalinhados, mas o caminho desfez-se até à quadra da casa.
Bruno, para conservar os costumes, perguntava-se:
Qual fim teria levado Segredo? Teria ele sido vendido a um carroceiro vil, que o obrigaria a cruzar pontes de madeira a poder de chicotadas, ignorando o seu instinto de segurança? Ainda se constroem mata-burros? Poderia ter sido ele um daqueles avistados de barriga aberta, no córrego de baixo, entre os urubus? Fora sacrificado com tiro de garruchas após ter o quadrúpede perdido esta sua característica, as quatro patas, primordial ao trabalho? Ficara cego de tanto revirar os olhos no tapa-olho a respirar o olor das éguas que relinchavam sobre sua sina estéril? Morrera no pasto picado por peçonha? Teria o burro denunciado o seu padrinho e dono, traindo a condição que exigia a confidência masculina, pronunciando um nome de mulher diferente do da avó dos meninos? Teria renegando o registro em batistério do seu
nome? Fugira para um livro de fábulas, para uma epopéia ibérica, andina, saárica, à procura do seu genitor, o pai-dos-burros?
Este mistério não foi desvendado nos monólogos de café, pelos neto e avô. Não sobrava tempo naqueles dias em Mó. Desvendou-se, sobre aquele dia de pricisão, relógio, tala e chapéu de feltro, que seu avô fora buscar na prefeitura da cidade uma autorização para trabalhar vendendo pipocas e maçãs do amor.
Permaneceu intacto um enigma, guardado a martelo e prego, entre os sons das quatro ferraduras a galope, na charrua da memória.
- Quem vovozinho mais ama?
O sábio Rocinante, alimentado na cocheira, um dia respondeu:
- Mariana!
Mariana era o nome da avó. Para quem nunca ouviu a voz de um burro, é algo como ligar o rádio sem sabê-lo no volume máximo, na hora em que uma voz de padre carrilha a uma santa negra uma prece:
- Consagro-vos a língua! Consagro-vos o entendimento!
Por isso Bruno correu branco, hister, louco com o susto, pela casa adentro. Escondeu-se no quarto das tias. Desde o momento de ser denunciado pelas suas palpitações aceleradas, até agora, ninguém acreditou nele. Nem os galãs em poses de folhetim que revestiam as paredes. São precisamente... vinte horas.
****
- Bem, Bruno, nosso tempo está encerrado por hoje. Na próxima seção
faremos uma tarefa com desenhos.
Adiantou-se a psicóloga.
*****
Publicado em Cadernos Negros 30,Quilombhoje, São Paulo, 2007