Minha jabuticabeira
Minha jabuticabeira
Ana Maria Maruggi
O quintal era estreito e comprido. Nele passei minha infância ou grande parte dela entre brincadeiras com amigos e primos. O chão não era totalmente plano, era de terra batida. Verduras diversas desabrochavam nas laterais. Em um antigo banco de ripas nos empoleirávamos contando coisas. No balanço de cordas com pneu senti minha primeira emoção de ir às alturas. Os varais corriam quietos pelas beiradas. E, o tanque imóvel me espionava.
O pequeno espaço também era disputado pela goiabeira e pela jabuticabeira. A goiabeira, coitadinha, mirrada e baixinha, não era atraente, era como se fosse a parente pobre daquele paraíso. Dava frutos bichados largando-os de qualquer jeito pelo chão para delírio dos pássaros e das galinhas que se atropelavam sobre as frutinhas.
Mas, a jabuticabeira... Essa era imbatível!
A jabuticabeira era alta de modo que de longe podia ser vista. Interessante era que se vestia de preto muitas vezes no ano. Quem é capaz de esquecer uma árvore que de tudo faz para ser lembrada? Era sempre o assunto do dia, ela e sua insistência em florescer deixando balançar as florezinhas pelos ares nas tardes de ventania.
Eu era pequeno e ela já existia, já estava lá quando nos mudamos. Não era bonita, parecia magrela e pelada, com formação de muitos buracos entre as galhadas. Isso me possibilitava alcançar os galhos mais altos esgueirando pelos vãos vazios que ela possuía. De tanto pisar em seus galhos já conhecia seus flancos, e já pressentia o prazer dela em perceber-me agarrado ao tronco.
No entanto, surpreendia-me toda vez que se revestia de frutinhas. Era quando atraía olhares e aves. Vivia coberta de pássaros que dividiam comigo as “jabuticas”, como eu as chamava. E não bastasse isso, ainda havia a vasta cabeleira de folhas que se avolumava nessa época, o que a tornava bela e assanhada.
— Que maravilha! – dizia a vizinhança.
Era mesmo uma grande maravilha, talvez a maior de toda a minha vida. Um encanto que me obrigava passar tardes inteiras apreciando os movimentos dela ao vento. Um pássaro que repentinamente escapava de suas folhagens com o bico ocupado. Os variados cantos que se embolavam em meio à galhada. As folhagens que tremulavam aqui e ali provocando o mistério de não saber que ave estaria se alimentando. As doces jabuticabas que iam para a geladeira para serem consumidas quando o final de tarde ameaçasse.
Assim como os pássaros eu tinha meu momento de deleite quando trepava pelos galhos mais baixos e permanecia no miolo, cercado de frutas e aves. Era um rei em seu trono. Depois de cheia a sacolinha, eu descia, para espanto dos pardais.
Com o passar dos anos fui subindo mais e mais alto, até que atingi o topo. Estar lá em cima era como se eu de repente adquirisse poderes. De lá podia ver a venda do Manoel Costa, e os ônibus que paravam no ponto. Minha escola ficava mais adiante, e só podia ver a pontinha do telhado dela.
Um dia ganhei um livro que falava sobre as jabuticabeiras e suas frutas. Levei para a escola uma sacolinha de “jabuticas”, e expliquei para meus amigos o que era. Interessante que alguns não conheciam, nem mesmo a goiaba sabiam que gosto tinha.
Quando fiz dezesseis, meu pai comprou outra casa e nos mudamos. Meu coração se apertou por causa da árvore. Mas a casa nova era bonita, moderna e de cômodos grandes, ao contrário da anterior. Só não tinha árvore, e quase não tinha quintal.
O imóvel foi vendido para o Seu Manoel da venda. Ele tinha dois filhos bem pequenos que ainda não subiam na jabuticabeira. Mas um dia subiriam e sentiriam a mesma felicidade que eu sentia. Voltei lá algumas vezes para vê-la. Até que me mudei para o exterior fazendo intercambio, e fiquei morando por lá alguns anos. Era dedicado, e logo consegui um bom emprego. Tudo acontecia depressa, e conheci alguém por quem me apaixonei, e a vida se ajeitou na Califórnia. Nunca mais pensei na jabuticabeira, nem naquele quintal, tampouco na minha infância. A jabuticabeira, certamente, já estaria sendo escalada pela família Costa, e isso era o que bastava.
Casei-me nos Estados Unidos e voltei ao Brasil dez anos depois com um filho pequeno e a esposa. Tinha muita saudade de todos e de tudo. Na minha memória de Brasil, apenas a jabuticabeira estava em alto relevo. No dia seguinte da minha chegada tomei um táxi e fui à casa dos Costa. Faria uma surpresa para eles e para minha adorada árvore. Meu coração pulava desejoso de saber quantas histórias teriam para me contar, quantas frutas teriam colhido e quantos pássaros fizeram ninho na árvore. Nas minhas lembranças me via comendo jabuticaba no degrau da cozinha, espreitando os pássaros e suas moradas. Será que eu ainda seria capaz de galgar sua galhada?
O automóvel entrou devagar na Rua Vereda, tudo estava tão mudado! Havia um quê silencioso que parecia querer esconder de mim alguma coisa. Um medo inexplicável me dominou. O carro parou diante do número que eu não mais reconhecia. E quase chorei ao constatar que no lugar da casa dos Costa, havia um enorme edifício. E a jabuticabeira não estava mais lá.