Rir é resistir

Rio de Janeiro, 23 de julho de 2021 – 22:08 BRT

 

Hortêncio respirou fundo antes de bater à porta de Oscar. Tentava afastar às preocupações de levar o vírus à família amiga. A vacinação já começara, mas ele pagou o preço por ser jovem e sem comorbidades: ser o último da fila. Era normal o desejo súbito de desenvolver asma? Entretanto, precisava pensar positivo. Estava de máscara e passara álcool em gel várias vezes. Daria certo. Precisava dar.

 

– Boa noite. O Oscar está? – Perguntou por perguntar, pois não havia razão para ele sair.

 

– Bom te ver, Hortêncio. Ele está lá no quarto estudando. Boa sorte em tirá-lo de lá. – A anfitriã suspirou. – O que é tão importante que fez você vir? – perguntou desconfiada.

 

– A estreia do basquete 3X3, é óbvio! Primeira vez que essa modalidade está nas Olimpíadas, não podemos perder. – Os olhos do moço brilhavam em expectativa.

 

Das ruas às Olimpíadas. Acompanhavam história sendo feita, não só com a entrada dessa modalidade, mas com a do skate e a do surfe também. As novas competições mostravam que a criatividade humana não tinha limites e os jogos pretendiam abraçar todas as formas de atividade física.

 

Os objetivos do COI eram fantásticos, pena que a humanidade corrompia até a beleza do esporte. Situações como a invasão de campo ocorrida na Copa América faziam Hortêncio perder a fé. Onde estava o respeito ao adversário? Era a nata dos ensinamentos de uma competição. Precisava mesmo vaiar o hino argentino?

 

A mãe de Oscar estava quieta enquanto Hortêncio divagava. A mulher pensava que ele poderia assistir à competição em casa. Seria melhor para todos. Se queria ver a partida junto do namorado, poderiam fazer via videochamada. Percebendo que sua aparição não foi bem recebida, o rapaz se defendeu:

 

– O Oscar está num desânimo sem fim, você sabe disso. Espero levar algum entusiamo para ele com mudança na rotina. Juro que tomei cuidado.

 

Ao escutar o verdadeiro objetivo dele, a matriarca cedeu. Tinha medo pelo bem-estar de todos, mas sabia que Hortêncio não era irresponsável. Além disso, seu filho andava muito abatido, como todo mundo, para falar a verdade. A situação estava deprimente.

 

Não fazia nem 3 meses do falecimento do ator Paulo Gustavo. A vacina não fora rápida o suficiente para salvá-lo e ficou no quase. Ah, aquele e-mail da Pfizer pegando poeira… Era revoltante a situação no país. Em abril, chegou ao assustador número de 4 mil mortes diárias. QUATRO MIL!

 

Oscar sofreu bastante com o luto. Era muito fã do comediante e emocionou-se no cinema assistindo “Minha mãe é uma peça 3”. Sentiu-se sortudo em se reconhecer no discurso matrimonial do caçula de Dona Hermínia. Afinal, era um alento saber que o problema de ser gay estava somente lá fora e não no leito familiar.

 

Queria que todas as pessoas pudessem ter o que ele tinha: o apoio dos parentes para enfrentar as adversidades do mundo sem abandonar a própria essência. Isso não deveria ser um privilégio.

 

– Tudo bem. Ele está no quarto. Boa sorte… – a mulher disse a Hortêncio enquanto estendia-lhe o álcool em gel.

 

 . . .

 

A única atividade de Oscar era estudar o dia inteiro. Sonhava em ser arquiteto e, após falhar em passar na UFRJ duas vezes seguidas, entrou em desespero. O destino estaria contra ele? Estaria fadado a ser um frustrado? Só queria não se sentir um fracassado uma vez naquele ano.

 

Enquanto assistia a uma videoaula, escutou alguém: era seu namorado Hortêncio.

 

– Está tarde, amanhã você estuda mais. – disse ele. – Daqui a pouco vai começar Japão e Rússia no basquete 3X3 feminino. É a estreia da modalidade nas Olimpíadas, vai mesmo perder?

 

– Você já está na faculdade, precisa compreender que estou em outra pegada. – respondeu sem tirar os olhos da tela.

 

– Aliás, o EaD está sendo péssimo. – Bufou ao mesmo tempo em que espiava o conteúdo da lição dele.

 

– Está reclamando de barriga cheia. – Oscar estava irritado, porque o companheiro atrapalhava sua concentração.

 

– Quem fez isso foi você. Eu bem queria passar na peneira de um time, ainda mais do Flamengo. Aí você, que logrou isso, desiste?! – Aquilo fora há uns 4 anos, mas ainda gerava revolta. – Não fica nessa lamúria, talvez deva aproveitar seu talento com a bola. Nem por isso você será infeliz.

 

Apesar de fracassar em ser atleta profissional, Hortêncio estava animado com o futuro. Cursava educação física e não largaria o basquete. Deus escrevia certo por linhas tortas, não? Às vezes, falhar hoje era exatamente o que se precisava para o sucesso de amanhã.

 

Sabia que seria difícil alcançar o posto de treinador de um clube grande. Entretanto, estava satisfeito em atuar no ensino fundamental. Levar o amor pelo esporte adiante, principalmente pelo seu favorito, era sua missão. Ansiava compartilhar a alegria sentida assistindo às partidas com o mundo.

 

Por essa mesma razão (levar alegria), atravessou o virulento Rio de Janeiro objetivando encontrar o namorado. Também sentia saudades de Paulo Gustavo e tantos outros, porém tentava ser otimista. A vacinação estava começando e logo a doença seria contida.

 

Era uma amostra do poder da ciência atual. Quem imaginaria na pré-história um domínio tão grande da tecnologia de imunizantes? Só tinha a agradecer por ter nascido em 2002. Ainda existiam muitos mistérios ocultos na natureza, mas já alcançaram um conhecimento grande o suficiente para que ninguém fosse capaz de dominá-lo na íntegra.

 

Ademais, como o humorista disse, rir era um ato de resistência. Precisavam ousar encontrar felicidade em meio ao desespero. Só assim, sobreviveriam àquele apocalipse sem cair em depressão e honrariam os que se foram. Os finados provavelmente não desejavam condenar os vivos ao eterno pesar.

 

A linha de pensamentos de Hortêncio foi interrompido pela fala entediada de Oscar:

 

– Eu sempre planejei ser arquiteto, você que tinha ambições profissionais no esporte. Os treinos tomariam muito do meu tempo, preciso me dedicar ao vestibular.

 

Hortêncio estava prestes a contra-argumentar quando percebeu que a conversa estava fugindo do propósito. Por isso, mudou sua fala de última hora e disse:

 

– O jogo vai começar. Só vai ser a estreia do basquete 3X3 nas Olimpíadas uma vez. Por outro lado, o vestibular, essa videoaula ou o que for estão aí eternamente. Por favor, me arrisquei vindo até aqui. Não desperdice o esforço. Até porque você está precisando se animar um pouco, lembre-se da frase do Paulo Gustavo: rir é um ato de resistência.

 

Oscar retirou o fone do ouvido e olhou feio em direção ao namorado. Já era chato decorar usos comerciais de funções orgânicas, ainda haveria distração no processo? Só queria silêncio… faltavam poucos meses para a prova e se recusava a desistir do sonho da arquitetura. Inferia-se, pois, que precisava se esforçar mais. Ademais, aquela partida não era o último biscoito do pacote, pelo contrário, tratava-se do primeiro de muitos. Apesar disso, só havia um jeito de se livrar do distrator.

 

– Depois que eu assistir, você vai embora? – perguntou Oscar contrariado.

 

Ao ver que obteve sucesso em sua missão, Hortêncio abriu um sorriso e assentiu várias vezes. A seguir, foi correndo para a sala ligar a televisão.

 

Desanimado, Oscar fechou o caderno no qual fazia anotações. A linda capa da Biblioteca Nacional apareceu em sua vista, tratava-se de uma coleção com paisagens da cidade. Ele encarou a figura imaginando se um dia teria a oportunidade de desenhar uma biblioteca também.

 

Quando viajava, o que mais gostava de observar eram as fachadas. Fossem o rococó histórico ou modernismo de Niemeyer, ele amava descobrir suas características únicas. A arquitetura mostrava que ser funcional não era o bastante para uma construção, pois era inerente à humanidade a ânsia pela estilização como forma de expressão.

 

Ele afastou tais reflexões e se juntou ao companheiro. Deixou aberta de antemão a página do Brasil Escola sobre isomeria. Assim, poderia dar uma lida enquanto assistia ao jogo. Com o celular estrategicamente escondido no bolso, sentou-se no sofá. A partida já estava em andamento e Hortêncio a acompanhava extasiado.

 

Oscar fingia que prestava atenção na disputa e tentava não se distrair durante a leitura. Todavia, não demorou para que fosse pego com a mão na massa.

 

– Larga isso! – Hortêncio disse irritado.

 

– Estou vendo o jogo! – Tentou disfarçar virando o olhar rapidamente para a tela. Ao fazê-lo, teve a oportunidade de acompanhar uma jogada sensacional. Que drible! – Caramba!

 

Percebendo o encanto do namorado, Hortêncio sorriu. Não era impossível ser vitorioso no final das contas. Esperava que a qualidade da equipe russa segurasse o outro por mais tempo na partida.

 

– Aquela é a Olga Frolkina. Ela arrasa, não é? – Hortêncio apresentou a jogadora encantado.

 

Oscar olhou torto para o parceiro, que era bi. Por um milésimo de segundo, o ciúme estava no ar. Isso era bom, já que indicava que a história do vestibular tinha sido esquecida ao menos momentaneamente. Hortêncio aparentemente foi bem-sucedido. Ser a responsável por entregar essa informação fê-lo gostar ainda mais da Olga Frolkina.

 

A partir dali, Oscar ficou vidrado no jogo. Era muito mais intenso que o basquete de 5, menos estratégia e mais habilidade. Estava hipnotizado pelos lances eletrizantes, capazes despertar o torcedor adormecido dentro dele. Rússia ou Japão? Torcia para o dono da casa só para a tal Olga Frolkina diminuir aos olhos do companheiro. Não que tenha funcionado. Placar final: 21 a 18 para a Rússia.

 

Era mais de 23 horas quando a partida acabou. Oscar estava alegre e sorridente. Hortêncio, sem vontade de partir. O próximo duelo já estava no ar: China e Romênia. Infelizmente, seria imprudente para ambos maratonar o campeonato.

 

Por isso, Hortêncio se despediu do namorado e da mãe dele. Era hora de encarar os riscos do mundo lá fora e seus inimigos microscópicos. Adoraria voltar para acompanhar todas partidas do 3x3 feminino, masculino e o de 5 também. Contudo, temia por sua vida. Depois da primeira dose de vacina, aí sim ele viria. Esperava que esse momentinho de diversão já fosse suficiente para provocar a mudança necessária na mente de Oscar.

 

Aparentemente, foi o bastante. Pois, quando o vestibulando pegou os exercícios de estequiometria para resolver antes de dormir, estavam tão fáceis quanto uma regra de 3 simples. Começou a acertar resultados antes incompreensíveis. Nada como a calma de um sorriso para clarear a mente e abrir caminho para novos raciocínios.

 

Paulo Gustavo acertara: rir era um ato de resistência. Nesse contexto, graças ao momento feliz assistindo à estreia do basquete 3x3 nas Olimpíadas junto do parceiro, Oscar conseguiu resistir com plenitude aos desafios daquele fim de dia. Esperava estar sereno assim no momento do vestibular. Para tal, era certo que lhe seria oferecida uma maravilhosa partida de basquete. Sendo ao lado do seu querido, ele não repetiria o erro de abrir mão de assistir.