O Duque e a Duquesa
Morávamos num bairro operário, as necessidades eram muitas, mas tenho saudades da infância e juventude. Receber presentes era uma coisa rara, a maioria dos pais acabava presenteando os filhos com material escolar ou um par de sapatos de solado de látex que nunca mais acabava. As esperanças de receber um brinquedo ou algo mais interessante do que um caderno novo ou um par de sapatos ficavam por conta de algum parente um pouco mais abastado ou quem sabe uma madrinha. Eu não tinha parentes abastados e a minha derradeira esperança que era minha madrinha e que realmente tinha posses, lamentavelmente faleceu quando eu tinha 8 anos de idade. Eu morria de inveja do Valter, meu vizinho, ele não perdia a oportunidade de espalhar aos quatro ventos que sua madrinha era uma Duquesa. Meu Deus, uma Duquesa! Eu não sabia ao certo o que vinha a ser uma duquesa, mas supunha que era uma pessoa importante, rica! Os anos sessenta estavam começando, tanto eu quanto o Valter e mais um montão de amigos íamos assistir os filmes do Ritintim ou do Vigilante Rodoviário na casa do meu tio Toninho, o único na rua que tinha uma tv, e nessas ocasiões víamos as propagandas dos autoramas e trens elétricos, coisas inimagináveis para o padrão dos meninos do bairro.
Certo dia o Valter anunciou que sua madrinha duquesa tinha mandado uma carta à sua mãe, ela finalmente viria visitá-lo. Nossas mentes férteis começaram a divagar; o que será que ela vai trazer de presente? Um autorama dos grandes, talvez um jogo de camisas de futebol, quem sabe uma bicicleta de marchas? Não! Uma duquesa tinha muito dinheiro, certamente atenderia a qualquer pedido de seu afilhado, se ele pedisse o autorama, o trem elétrico, o jogo de camisas e até mesmo a bicicleta, ela certamente iria lhe presentear com tudo, afinal desde o batismo ela nunca mais tinha visitado o afilhado. A notícia tomou corpo pela rua, Valter era o alvo das atenções e nós lhe demos um apelido; “Duque”. Nada mais justo, se era afilhado de duquesa, tinha que ser duque!
Nos poucos dias que restavam para a chegada da duquesa, Valter passou a ser paparicado por todos os garotos, ninguém queria ficar fora de uma disputa numa pista de autorama, ou ainda ficar fora do time de futebol. Arranjamos até mesmo um nome para o time, Vila Operária!. Com incrível velocidade os presentes se materializavam em nossas mentes. Cheguei a sonhar com os presentes que meu vizinho iria receber e eu teria a oportunidade de desfrutar.
Finalmente o dia tão esperado, a duquesa estava para chegar. Era uma pena morarmos numa rua tão esburacada, onde o lixo era coletado por uma carroça puxada por burros e conduzida pelo seu Arlindo - o lixeiro. Não era possível a circulação de nenhum automóvel ou caminhão, que se limitavam a circular pela rua Alencar, a única pavimentada. Desde cedo fizemos plantão na Alencar esperando pelo carrão da duquesa. Naquela época os automóveis eram raros lá no bairro. Ouvíamos um barulho de motor e corríamos para ver se era a duquesa, o Valter estava mais ansioso do quem nunca. As onze e dez chegou o ônibus que vinha da Praça Clóvis, alguns passageiros desceram, entre eles uma mulher bem vestida carregando uma mala e perguntando pela Dona Joana - a mãe de Valter. Meu Deus! Era a duquesa, tinha vindo de ônibus. Lógico, ela não conhecia nosso bairro, ela vivia na parte chic da cidade e certamente não queria se aventurar, por isso pegou o ônibus – justificamos mentalmente sua chegada nada triunfal.
O mais importante era a mala. E que mala! Pelo seu tamanho cabia um autorama dos grandes, o jogo de camisas e talvez algum outro brinquedo. Dois a dois, nós nos revezamos carregando a mala, tínhamos cuidado, o autorama não podia sofrer pancadas, a duquesa nos seguia pela ladeira da Araújo e finalmente pela esburacada rua um. Quando chegamos só o Valter entrou em sua casa acompanhando sua madrinha, nós ficamos do lado de fora na expectativa. Ninguém arredava pé de frente da casa, esperamos pelo chamado de Valter para começarmos a brincar, nem mesmo fomos almoçar. As horas passavam e nada!
Amigo ingrato, o duque tinha nos traído, egoísta, não convidou nenhum de nós para brincar, já eram mais de 4 horas e nada dele dar as caras – comentávamos. Finalmente, um pouco antes das cinco a Dona Joana desceu as escadas acompanhando a duquesa, e para nosso espanto a mulher continuava a carregar a mala pesada. Eu sabia! – imaginei – o Valter tinha feito uma das suas traquinagens e sua madrinha o puniu levando o autorama embora!
A duquesa apanhou o ônibus e foi embora, não vimos o Valter naquele dia, ele nem mesmo foi assistir o Jet Jackson – o comandante meteoro - na casa do tio Toninho. No dia seguinte a verdade veio à tona, a duquesa estava falida, não tinha mais nenhum tostão, na verdade veio para vender roupas usadas para a mãe de Valter e para as vizinhas. Mal sabia ela que nenhuma de nossas mães tinha dinheiro para roupas que não fossem as que elas próprias costuravam em casa. Coitado do duque, onde ele ia a gozação era geral, a duquesa não lhe deu nada e ainda por cima ele descobriu que seu cofrinho do achocolatado Kresto havia sido arrombado, sua madrinha havia roubado suas moedas. Naqueles dias surgiu uma nova cadelinha lá na rua, uma vira-lata, pêlo encardido, sarnenta. Logo arranjamos um bom nome para ela; Duquesa.
Anos mais tarde, quando eu nem me lembrava mais da Vila Operária, entrei numa loja de carros importados chamada Duque, e para minha surpresa lá estava o meu amigo de infância o Valter. Fiquei sabendo que ele era o dono daquela loja e de outros empreendimentos, tudo herdado de sua madrinha a Duquesa. Pois bem, eu quis saber de toda a história e ele me contou. Sua madrinha ganhou o apelido de duquesa quando trabalhava numa fábrica de tecidos, ela era muito bonita e se arrumava muito mais do que as outras mulheres. Nessa época começou a namorar com um homem estrangeiro que vinha buscá-la no final do expediente com um Cadillac. Mal sabia ela que ele era apenas o motorista de um falsário e acabou sendo preso. A duquesa que havia se casado com o estrangeiro e morava na casa do falsário ficou na rua da amargura e por isso passou a vender roupas usadas para sobreviver. Mas por ser uma mulher muito bonita e bem tratada, ela arranjou um emprego de doméstica na casa de um milionário, dono de uma loja de departamentos. Ela trabalhou lá muitos anos e ele por ser um homem sozinho no mundo se afeiçoou por ela, quando estava moribundo deixou toda a sua fortuna para a sua empregada, a duquesa ficou com toda a fortuna. Valter já era homem feito e trabalhava como bancário. Sem mais nem menos começou a receber presentes e não sabia quem os dava. Um dia, quando já estava casado, recebeu a visita de um advogado e de um tabelião. A duquesa havia morrido e deixou toda sua fortuna para ele, ela deixou também uma carta onde pedia desculpas e confessava ter roubado o dinheiro do cofrinho do Kresto. Ao invés de autorama o Duque tinha agora uma loja de carros de verdade.