Os excluídos
Os pobres sempre se concentraram nas sedes das capitanias, em vilas e povoados lá nos tempos da América portuguesa. Alguns viveram ou ainda vivem dispersos e isolados em sítios, em locais ermos, no entorno de fazendas de gado e engenhos de açúcar, por exemplo. Atualmente concentram-se na periferia das grandes capitais. O pobre é comumente aquele que tem o mínimo ou que despossui o necessário para viver.
Estamos no Rio de Janeiro. Aqui vive Tobias com sua família. Vindo do Nordeste brasileiro, só encontrou moradia em favelas. Não tem emprego fixo. É free lancers, vivendo de “expedientes”, biscates, pequenas tarefas. É considerado cidadão de segunda ordem, sempre suspeito aos olhos da polícia.
No Nordeste, Tobias não tinha trabalho. Vivia, ele a mulher e os filhos, nas cercanias da cidade grande, fugindo das secas e da fome. Antes do deslocamento para a capital, viviam em casebres rudimentares e humildes, desprovido de qualquer conforto. Sua casa, no interior, em uma região com altas temperaturas e pouca chuva, era pequena, coberta de palha, sem arejamento, sem luz, sem asseio, casa de solo lodacento no inverno. As paredes e a armação dos telhados eram feitas de ripas de madeira ou barro de sopapo. Para as paredes as ripas não sofriam aparelhamento nenhum e tinham os espaços entre si preenchidos por mistura de barro com capins. Assim, Tobias viveu no sertão agreste e cansou de ver sua família se alimentando de mandioca ou de caça ou padecer de fome e sede, em muitos momentos da sua vida. Tobias queria mudanças e encontrou na capital muitas dificuldades. Foi morar na periferia, sem acesso a água tratada, serviço de remoção de lixo e esgotos canalizados, ou seja, viviam em péssimas condições de higiene. Sentiu-se frustrado e triste. Ainda assim não desistiu e buscou trabalho. Como tivesse pouco estudo e só sabia lidar com roças e animais de fazendas, teve muita dificuldade para encontrar algo estável, que lhe desse recursos para prover sua família do básico. Não possuía emprego formal, portanto não recebia salário. Trabalhando dessa forma, ganhava pouco, abaixo do ideal para atender as necessidades essenciais de seus entes queridos. Vivia em um ambiente insalubre. Assim eram as moradias de todos os pobres dessa área, onde ele vivia com sua família. Além desses problemas, havia também a violência diária nesse entorno, com brigas, tiros, mortes, estupros, que deixavam Tobias muito acabrunhado e desesperançado. Não queria ver a sua família exposta a esta situação. A maior oportunidade de emprego formal estava no parque fabril, mas essas fábricas não eram suficientes para absorver o contingente de mãos de obra disponível e com pouca ou nenhuma formação profissional. Tobias estava nesse grupo de homens despreparados, fazendo parte dessa mão de obra excedente...
Sua mulher, Maria, também buscava algo para fazer, mas era limitada pela necessidade de cuidar dos filhos. Tinham dos meninos e uma menina em idades que necessitavam da atenção de mãe. Estava cansada de não poder dar a seus filhos algum conforto e alimentação mais saudável. Cansada de tanta degradação, tanto vício, promiscuidade nesse ambiente degradado, onde os excrementos correm a céu aberto. Doía-lhe quando os filhos necessitavam de roupa ou leite e não podia suprir-lhes essas necessidades mínimas.
Apesar desse triste cenário as autoridades locais não demonstravam disposição em atenuar os problemas. A ausência do estado se mostrava presente com a ausência de serviços essenciais para a manutenção da higiene, como água, esgoto ou a coleta regular do lixo. Assim viviam Tobias e Maria com seus filhos em meios a carências e infortúnios, mas eles estavam cansados dessa vida errante, instável, indigente e procuravam uma saída. Qual saída restava para uma família desqualificada diante de tanta precariedade? Tobias tinha um amigo. Conversavam sempre sobre seus problemas e os problemas de suas famílias. Comentaram sobre o desejo de se mudarem para o Rio de Janeiro ou São Paulo, onde havia mais oportunidades de trabalho. Carregavam seus próprios sonhos de uma vida melhor e buscavam novas perspectivas nessa possibilidade de migrarem para os grandes centros econômicos do Brasil.
Eles, tanto Tobias quanto seu amigo Paulo, nasceram pobres e com a má distribuição de renda e da riqueza, pelo discriminatório funcionamento do sistema política e econômico, provocando desemprego generalizado e tensões sociais, inflação e deterioração do poder aquisitivo, ficaram praticamente indigentes ou relegados à condição de penúria, sujeitando-se a qualquer atividade que pudesse lhes render algum dinheiro para o sustento de suas famílias. Algumas vezes, recorriam as casas de abrigo em busca de comida, vestuário e principalmente educação para seus filhos.
Muitos dos seus conhecidos entregaram-se a mendicância e a indigência plena, bebendo cachaça, pedindo comida, dormindo ao relento, esgueirando-se pelas ruelas da cidade. Era notória a ausência do estado, gerando esse mundo dos excluídos... Esses excluídos, muitos, tomaram a decisão de mudança. Dentre eles estavam Tobias e Paulo. Buscaram o dono de um caminhão pau de arara, principal meio de transporte dos retirantes. Combinaram o dia da retirada do Nordeste em direção ao Rio de Janeiro. Coberto com lona e com assentos de madeira, esse veículo passava longe das regulamentações básicas de segurança de trânsito. Passaram dias na carroceria do caminhão, aguentando os sacolejos desse veículo lotado de esperança. As crianças, filhos de Tobias e do Paulo, inicialmente se divertiram. Era uma aventura para eles. Entretanto, o tempo foi passando, os problemas aparecendo: falta de comida, só carregavam a rapadura e a farinha, falta de espaço para dormir e muitas horas em espaços reduzidos, na viagem. Assim, suas famílias deslocaram-se para o Sudeste, impulsionados pelas oportunidades que o Rio de Janeiro apresentava de mudança.
De andança em andança eles chegaram ao Rio de Janeiro. A princípio foi difícil a fixação na cidade, mas encontram uma rede de apoio formada por amigos nordestinos, que já estavam estabelecidos na cidade. Esse acolhimento amenizou os problemas das duas famílias, mas, mesmo assim, a vida não foi fácil, inicialmente. Tobias logo veio a descobrir que a vida seria dura nessa cidade complexa e cheias de percalços. As duas famílias se estabeleceram na Baixada Fluminense, região onde existiam aluguéis mais baratos.
Havia muitas possibilidades de trabalho, mas os descolamentos para o centro da cidade requeriam condução, principalmente o trem e tempo de deslocamento. Tobias tinha encontrado trabalho como ajudante de obra no centro da cidade. O salário era baixo, mas possibilitava comprar comida para as crianças e pagar o aluguel. Desse modo, pode construir alguma ilusão, mas percebeu que a péssima remuneração salarial, o custo de vida alto, ainda que morando distante do centro nervoso da cidade,
a exploração e as precárias condições de trabalho eram ingredientes para encarar essa nove realidade: não havia saída para ele e para sua família! Viveriam sempre cercado de angústias, de carências, de incertezas, diante dessas profundas desigualdades socioeconômicas, dessa marginalização própria para os excluídos nessa estratificação social.