Apressada
"Correi, sôfregos, correi ladeira acima, e chegai sempre ou muito tarde ou muito cedo, mas continuai a correr, a matar-vos, sem perspectiva de paz ou conciliação."
Carlos Drumond de Andrade
Um resto de névoa da noite deixava tudo azul bem clarinho. Parecia que a manhã se vestiu assim só para mim! Que linda ela estava!
Com a caneca na mão, debruçado na varanda, eu tomava meu achocolatado e mastigava meu pão com manteiga sentindo esse prazer matinal que poucos conseguem. Os passarinhos cantavam e alguns carros passavam lá embaixo.
— Dú, me leva pra faculdade que eu to atrasadérrima!
— Bom dia pra você também Glória, dormiu bem? — “Por que Gloria? Devia ser Aparecida; combinava mais!”
— Anda logo, bicho preguiça! Ai meu Deus, vamo logo, Dú!
“Xinga a vontade, bate o pé o quanto quiser, vou comer meu pão, ouvir os passarinhos, tomar meu chocolate e esperar a Dri passar”
— Tá aí ainda seu lerdo!
“Vai de ônibus que não sou seu chofer!”
— Ta de brincadeira, né! — e ela voltava pisando duro para apertar mil vezes o botão do elevador em menos de três segundos.
“Péraí que a Dri já vai passar, péraí...”
— Bom dia Dri!
— Oi, Edu! Bom dia.
— Quer carona?
— Num precisa não, brigada. Vô pra outro lado.
— Ta bom. Tchauzinho gata!
— Tchauzinho.
“Meu Deus, como ela é linda e ta de azul clarinho só pra competir com a manhã! Essa menina!”
— Vamô, traste! — me puxou e quase a caneca caiu lá embaixo.
— Me solta, ô!
— Tô atrasada, droga!
— Você já nasceu atrasada! O elevador chegou?
E ela correu para apertar mais mil vezes o botão. Eu sabia que o elevador já tinha passado umas dez vezes e a atropelada nem viu. Era mais importante apertar mil vezes o botão do que ver se o elevador chegou.
Enquanto a Glória quase quebrava o botão, deu tempo de escovar os dentes, dar nó na gravata, dar um beijo na mãe e pegar minhas coisas.
— Anda logo, ô múmia! Já chegou! — ela gritava pra dentro do apartamento e nem viu que eu já tava do lado dela. Chegamos no carro e apalpei os bolsos fazendo cara de idiota.
— Você esqueceu a chave? Não acredito! Meu Deus, o que eu fiz pra merecer um irmão desse! Irmão não, né, porque irmão ajuda a gente!
Enquanto a Glória dava voltas em torno de si, com uma mão segurando a testa e a outra a cintura, entrei no carro, afivelei o cinto, liguei o motor e ela ainda me xingava. Buzinei e ela entrou no carro bufando.
— Põe o cinto, maninha do coração, põe. Te amo, viu.
— Ai, te odeio! Te odeio mil vezes!
Adoro parar no farol amarelo; enquanto ela xinga, eu sinto cócegas no céu da boca, querendo rir, mas faço pose de sério, de quem está fazendo o melhor que pode. Enquanto o trânsito andava bem ela batia os dedos nos joelhos e balançava os pés e quando dava para ultrapassar algum carro, ela batia no painel e apontava:
— Vai, passa por ali, vai! — essa eu achava muita graça. Primeiro dava seta, olhava nos espelhos e, quase sempre, não dava mais pra passar.
Naquele dia chegamos cedo, como em todos os outros que ela está atrasada; ou seja, todo dia. Desceu, bateu a porta, jogou a bolsa no ombro e saiu andando com grandes passadas que deixavam ela ridícula.
Quando estacionei o carro na minha vaga na empresa vi no banco de trás o fichário da Glória. Arrumei a gravata e desliguei o celular.