1210-A PEQUNA BIBLIOTECA
Tio Armando sempre foi o mais distinto e o que demonstrava melhor conhecimento, bom senso e, porque não dizê-lo, o mais erudito dos irmãos Muschioni. Filho de vovó Beatriz e vovô Aníbal, ele trazia no semblante uma aura distinta, adquirida tanto pelas suas leituras quanto pelas experiências que a vida lhe havia proporcionado. Ainda jovem, foi convocado para o serviço militar obrigatório e serviu em uma unidade de cavalaria em Três Corações, Minas Gerais. Ali, teve seu destino marcado por um infortúnio: um coice de cavalo o feriu gravemente no tornozelo esquerdo. O ferimento deixou uma cicatriz em forma de estrela, que ele carregaria pelo resto da vida, como uma lembrança silenciosa de sua passagem pelo exército.
Com a baixa militar, Armando voltou à vida civil e decidiu aprender o ofício de alfaiate. Não demorou para que se destacasse na Alfaiataria Denubila, a mais renomada de São Sebastião, onde seu talento e elegância eram inegáveis. Era homem de fino trato, educado e sempre envolto em um charme discreto que conquistava a simpatia de todos ao seu redor. Seu gosto refinado, contudo, não se limitava à moda.
A verdadeira paixão de Tio Armando era a leitura. Ele nutria uma aversão aos romances de qualidade duvidosa, preferindo sempre obras que pudessem elevar seu espírito e intelecto. No canto de seu quarto de solteiro, uma modesta prateleira de madeira guardava seus tesouros literários. Apesar de pequena, aquela biblioteca era uma janela para universos vastos e complexos. Ali, repousavam títulos que o acompanhavam há anos, como Boas Maneiras, de Carmem Dávila, e as densas reflexões de Schopenhauer em As Dores do Mundo. Havia também o instigante O Critério, de James Balmes, que o levava a questionar a verdade e a razão, e os livros de Fritz Kahn, como Nossa Vida Sexual e O Livro da Natureza, que mesclavam ciência e curiosidade sobre o corpo humano e o mundo ao redor.
Tio Armando lia e relia esses livros com uma dedicação quase religiosa. Entre as páginas amarelecidas, encontrava sempre algo novo, algo que, de algum modo, ainda não havia percebido. A cada leitura, parecia que as palavras se renovavam, oferecendo novas perspectivas. Além dos livros, guardava também edições antigas de revistas como Em Guarda, Seleções – de 1942, que iam do número 1 ao 12 –, Vida e Saúde e Atalaia. Tudo aquilo compunha seu pequeno refúgio intelectual, um universo íntimo onde apenas ele tinha acesso.
Eram poucos os que tinham a oportunidade de conhecer aquela coleção. Não por falta de vontade de Armando, mas porque poucos compreendiam o valor de cada volume, de cada página. Para ele, a leitura era mais do que um passatempo – era uma forma de viver, de entender o mundo e, sobretudo, de entender a si mesmo.
A pequena biblioteca de Tio Armando, com seus livros bem selecionados e suas revistas meticulosamente organizadas, refletia a alma de um homem que, embora discreto, possuía uma profundidade rara. Ele lia o mundo com os olhos e com o coração, e em cada página virada, absorvia um pouco mais da essência do que significa ser humano.
ANTONIO ROQUE GOBBO
BELO HORIZONTE, 21.09.2024
CONTO # 1210 DA SÉRIE INFINITAS HISTÓRIAS