Conversas com uma mãe órfã

Este áudio foi gravado através de uma entrevista com Neusa da Conceição Leite, senhora de 74 anos, mãe de 4 filhos, duas mulheres já formadas e 2 filhos, também crescidos. A ideia veio a partir de um estudo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), polo de PSICOLOGIA. O objetivo dessa entrevista é identificar o sentimento primário após uma notícia impactante, ou seja, identificar o Luto.

Na manhã do dia 2 de setembro, no ano de 1989, o filho de Neusa da C. Leite foi assassinado, aos 52 anos de idade. Jesus da Conceição Rodrigues, vítima de bala perdida enquanto atravessava a rua, em direção a sua casa. Deixa 3 filhos, ainda menores de idade, e uma esposa.

Entrevista divulgada para fins educativos. O entrevistador é o psicólogo, pesquisador e doutor David de Alcântara Nunes, 42 anos, professor e reitor da UFPE.

A entrevista durou cerca de 1h40, com pausas prolongadas. A transcrição foi realizada também pelo Dr. David de A. Nunes.

A principal dificuldade enfrentada pelo psicólogo foi, de maneira suscinta, responder a seguinte pergunta: Como contar para uma mãe que seu filho está morto?

Transcrição divulgada para fins pedagógicos.

[NEUSA ENTRA NO CONSULTÓRIO]

DR. DAVID: Boa tarde, senhora Conceição. Obrigado por ter aceitado conceder esta entrevista.

NEUSA: Pode me tratar por você, moço. A "senhora" 'tá no céu.

DR. DAVID: Pois bem, se assim você deseja, respeito isso. Posso chamar a você de Neusa, então?

NEUSA: Sem nenhum problema. [Ela toma uma pausa para respirar] Por que estou aqui?

DR. DAVID: Não explicaram na ligação?

NEUSA: Falaram de estudo, de universidade. Meu filho Jesus que indicou? Ele que trabalha na faculdade, se me lembro bem.

DR. DAVID: Vamos por partes. Primeiro, deixa eu me apresentar a você, pode ser? Logo mais te explico detalhadamente o objetivo de estudo.

[NEUSA ASSENTE]

Muito bem. Sou David de Alcântara Nunes, psicólogo formado, professor e reitor da Universidade Federal de Pernambuco, onde nos encontramos agora. Estou supervisionando um estudo que tem por base identificar os sentimentos primordiais diante de lembranças, impactos psicológicos e traumas, através de uma análise física, ou seja, como o teu corpo vai reagir, e emotiva, como você irá se sentir. Vão ser algumas perguntas. [PAUSA CURTA]

Podemos iniciar?

NEUSA: Claro.

DR. DAVID: Pois bem, Neusa. As primeiras perguntas são para conhecer você. Certo? Caso não queira responder, deve sinalizar que eu prossigo para a próxima.

[NEUSA ASSENTE]

DR. DAVID: Qual sua idade?

NEUSA: Tenho 74 anos, mas vou completar 75 daqui duas semanas, dia 12 de setembro.

DR. DAVID: Você possui filhos?

NEUSA: 4 filhos. Jesus é meu filho mais velho, depois Maria Roberta, Alfredo Miguel e Maria Rosineide.

DR. DAVID: Você é muito ligada à religião?

NEUSA: Com certeza, meu filho. Deus é tudo na minha vida. Ele quem me ajudou a criar meus filhos e me deus forças durante todos esses anos.

DR. DAVID: Você é casada?

NEUSA: Meu marido me deixou ainda prenha de Rosineide. Sou mãe solteira.

DR. DAVID: Como isso aconteceu?

NEUSA: Eu suspeitava, na verdade. Desde o nascimento de Miguel, Alfredo se distanciou de mim e da família. Achei que ele tinha conhecido outra mulher, uma mais nova, talvez. E sem crianças pra cuidar. Quando contei pra ele de Rose, fomos dormir e acordei sem ninguém do meu lado. Nunca mais voltou.

DR. DAVID: Com o que a senhora trabalha?

NEUSA: Quando Alfredo me deixou fiquei perdida, sem saber o que fazer. Era ele quem mantinha a família e eu era só dona de casa. Aí fui trabalhar com o que sabia fazer, cuidar da casa. Deixava meus filhos com minha irmã às 5h da manhã e os pegava 9h da noite. Trabalhei em muita casa, lavando roupa, chão, fazendo comida. Era a única coisa que sabia fazer. Nunca estudei. Abandonei a escola pra casar, era o que painho e mainha queria.

DR. DAVID: O que ensinou para seus filhos?

NEUSA: Eu não deixava eles faltar um dia na escola. Eu não queria que dependessem de ninguém, entende, meu filho? Sempre dizia do estudo. Via minha irmã que se formou e é enfermeira, ela vivia muito mais confortável que eu.

DR. DAVID: A senh- Desculpe, você arrumou outro marido?

NEUSA: Nenhum homem quer mulher desquitada.

DR. DAVID: Certo... Bem, Neusa, agora vou focalizar as perguntas sobre seu filho mais velho, Jesus.

NEUSA: Tá certo, seu David.

DR. DAVID: Com que idade você o concebeu? Seu primeiro filho, certo?

NEUSA: Jesus veio de surpresa. Aquele menino foi um milagre, sabe? Era o que me faltava. Um filho. Eu já tinha tentado por muitos anos com Alfredo, mas só aos 22 que veio o menino.

DR. DAVID: Como é a personalidade de Jesus?

NEUSA: Ah, desde de novinho ele é calado... [NEUSA RI] Lembro de quando tinha 5 aninhos e me chamou pra perguntar qual era meu maior medo. Eu respondi que era perder ele. Sempre muito cuidadoso com todo mundo, zeloso. Jesus era quem me ajudava, já mais velhinho, a cuidar de seus irmãos. Ele me via chorar, aí me acolhia. Eu não entendo bem de psicologia, mas quando ele me explicou direitinho o que queria, vi ele ali. Sempre se importava mais com os outros do que com ele mesmo. Rapaz esperto.

DR. DAVID: Qual sua melhor lembrança com ele?

NEUSA: Tem várias, meu filho. Desde que era criança até virar um moço grande. Eu lembro bem de levar ele pro altar, pra Marília. Sei que normalmente é pai que faz isso, mas meu filho disse que queria porque queria que fosse eu. Eu chorei tanto. Fiquei tão emocionada. Meu menininho tinha crescido e ele pediu pra que eu levasse ele pro altar. Marília é mulher boa, de família boa e muito requintada. Jê se encantou tanto por ela que disse pra mim "Mainha, vou casar com ela". Isso no mesmo dia que a conheceu. [NEUSA COMEÇA A LACRIMEJAR] Lembro tanto desse dia... Foi muito bom ver meu menino casando, indo construir família. Ele me deu três netinhos lindos.

DR. DAVID: Você se orgulha de Jesus?

NEUSA: Demais. Meus filhos são meu mundo. Jesus era mais diferente dos irmãos, menos agitado. Eu ficava preocupada, mas depois entendi que era o jeitinho dele ser menos conversadeiro. Ele é um homem muito bom.

DR. DAVID: Qual a pior memória com ele?

NEUSA: Não sei dizer, mas acho que quando ele foi defender um artigo na faculdade. Eu não entendia nada, nem queria ir pra não deixar ele envergonhado. Era um monte de professor bem educado. E eu era só dona de casa, sem estudo, analfabeta. Eu não queria que ele ficasse com vergonha de mim, mas ele insistiu tanto que eu fui. Ele tava todo bem vestido apresentando um mói de palavra complicada, aí ficava quieta. Cheguei atrasada por causa do ônibus, entrei na sala já chorando, achei que tinha perdido a hora e não ia poder ver. Mas conseguir ver Jesus brilhando. Os professores aplaudiram. [NEUSA RI] Jesus é muito inteligente, desde novinho.

DR. DAVID: Você o ama?

NEUSA: Que pergunta é essa, menino? [NEUSA RI] É claro que amo meu filho.

DR DAVID: Pode explicar esse amor?

NEUSA: É difícil de dizer... Amor de mãe é complicado. Eu dou de tudo pra meus filhos, cuido deles sempre que posso. Ainda são crianças, mesmo com um corpo de gente formada. Como se parte de mim deixasse minha alma e fosse pra eles. Agora 'tô dividida, eu e meus filhos somos a mesma alma. Faço de tudo por eles. Acho que se um deles morrer, eu morro junto. Meu espírito é deles.

DR. DAVID: Certo... Bem, Neusa, chegamos no principal momento de nossa entrevista. Eu preciso lhe dizer algo e... Preciso saber como a senhora vai reagir. Física e emocionalmente. Isso é, acima de tudo, científico.

NEUSA: Apois fale logo, menino. 'Tô ficando preocupada com a sua agonia. Aconteceu algo com meu filho Jesus?

[DAVID RESPIRA FUNDO]

[PAUSA PROLONGADA]

DR. DAVID: Na manhã de hoje foi notificada a morte de um dos integrantes de nossa grade profissional da Universidade Federal de Pernambuco. Do polo de Psicologia. [O ROSTO DE NEUSA SE DESMANCHA] O... O rapaz Jesus foi vítima de bala perdida, aos 52 anos. Levaram para o hospital, mas... Já era tarde. Às 10h45 da manhã de hoje, Jesus veio a falecer. Sinto muito, Neusa, pela perda de seu filho.

[NEUSA ENCARA DR. DAVID POR LONGOS MINUTOS. LÁGRIMAS COMEÇAM A SURGIR DE SEUS OLHOS]

NEUSA: Então... É isso? Esse é o motivo disso tudo?

DR. DAVID: Fico triste em afirmar isso a senhora, mas... É. Escuta, Jesus era um homem bom, ele me ensinou muitas coisas e-

[NEUSA INTERROMPE]

NEUSA: O que você quer que eu diga, seu infeliz? Meu rapaz... O meu menino. Não, ele não pode 'tá morto, isso é mentira, né? Ele quem deve 'tá escutando isso tudo. Não é possível. [NEUSA COMEÇA A SOLUÇAR]

Nesse momento, os protocolos da entrevista foram quebrados. Dr. David se compadece à história de Neusa e a abraça fortemente. Neusa de Conceição Leite, uma mulher negra, trabalhadora e forte, acaba de se tornar órfã de um filho.

Algumas das reações que foram apresentadas pela entrevistada se caracterizam como: Tremores pelo corpo, falta de ar, choro incontrolável e negação.

A entrevista teve seu final repentino ao levarem Neusa para o hospital, caracterizando sintomas de taquicardia.

Às 17h58, no Hospital da Santa Casa, foi notificada a morte de Neusa da Conceição Leite, senhora de 74 anos, prestes à completar 75. Causa: Ataque do coração.

Com essa entrevista divulgada, é possível salientar a complexidade do processo de Luto em suas facetas.

Neusa nos ensinou sobre amor, afeto e, infelizmente, como a perda de um ente querido pode nos causar sérios transtornos -- físicos e mentais. Neusa deixa 3 filhos vivos. 7 irmãos. E uma vida.