O Cigarro

Três meses de aluguel atrasados. Quando chegava no cortiço, na Rua das Palmeiras, subia as escadas de três em três degraus — não queria dar de frente com dona Alsina, proprietária do amontoado de apartamentinhos. Edifício que outrora havia sido um fino e elegante prédio da classe média paulistana, mas, como quase todo o resto do país, era uma sombra decadente, descolorido.

 

O mercado da música havia virado, tomado pelo sertanejo universitário e outros derivativos tão baixos quanto. Sempre que entregava o disquinho para os donos dos bares, com o repertório da banda, me diziam que o repertório necessariamente era somente um: sertanejo universitário. Mesmo nos estabelecimentos onde tradicionalmente a música apresentada era a popular brasileira, em que éramos os músicos oficiais, para seguir o mercado e atrair clientes, reconfiguraram o apelo para sertanejo universitário. Eu e meus colegas nos recusávamos a nos rendermos aquilo, mas não sem consequências: a falta de trabalho e a queda brusca na renda. Era o tempo do grande boom da internet. Muitos teorizam que isso foi um dos responsáveis pelo desinteresse dos jovens em aprender instrumentos musicais, levando muitas escolas de musica a falência, o que prejudicou a classe e, consequentemente, a mim. Nunca saberemos se esse desinteresse repentino foi de fato por causa da internet ou um movimento natural.

 

Em uma tarde, chegando ao prédio, subindo as escadas como o de sempre, ouço um grito, me fazendo encolher o pescoço dentro dos ombros:

 

"Compaixão também tem limite, José Fernando!".

 

Era assim que me chamava, pelo nome composto, coisa que sequer minha mãe o fazia, que me chamava pelo segundo nome, pois a peripécia foi obra de meu pai, prometendo-a que iria ao cartório realizar o registro com o nome Fernando, mas queria homenagear o pai; daí, o resultado.

 

"Já estamos caminhando para o quarto mês, José Fernando" — concluiu ela com seu sotaque riograndense e um periquito sobre o ombro, bicando sua orelha.

 

Quando me cobrava, sempre a prometia que a quitação do débito seria para a semana, sabendo não ser possível. Desta vez, para a alegria da velha, cumpriria — venderia parte dos meus instrumentos musicais e outros acessórios, que me valeriam uma boa quantia. Uma coleção que levei mais de uma década para formá-la, incluindo um violão Di Giorgio, fabricado em 1967, época áurea da marca, em que seus violões eram verdadeiras obras de arte, projetados pelo Luthier fundador da marca, Romeo Di Giorgio, cujo o modelo que eu possuía era nomeado de "Romeo 2", utilizado por nomes como Tom Jobim, Baden Powell, Gilberto Gil, João Gilberto... Feito totalmente a mão; tarraxas em osso, um adorno em madrepérola envolto à cabeça, com todos os componentes originais; uma nota.

 

No dia seguinte, chamei um Táxi e meti toda parafernália no veículo, rumo a Teodoro Sampaio. Não possuía sequer o dinheiro para pagar o motorista; pedi que aguardasse até a concretização da primeira venda para paga-lo.

 

"Fica tranquilo, filho" — Disse ele com o corpo inclinado para o banco do passageiro, enquanto me apoiei do lado de fora da janela.

 

Voltaria ao mercado de trabalho convencional, coisa que nunca havia me adaptado, sendo muito feliz no período em que não dependi de um patrão morcegando meu pescoço.

 

Era um dia típico de inverno paulistano, onde se sai durante o dia com temperaturas beirando os trinta graus, mas, ao cair a noite, abruptamente cai. Retornando a pé, a fim de economizar dinheiro, decidi que um cigarro, depois de seis anos, não faria mal.

 

A noite começava a cair, as alamedas já com poucas pessoas em função do frio e, ao dobrar a esquina, um homem sai debaixo de um cobertor cinzento, coberto por uma camada cor de carbono nos braços e nos pés descalços; dizendo, batendo o dedo indicador e o médio na boca:

 

— Um cigarrim, um cigarrim, cigarrim.

 

Respondi que havia acabado de compra-lo avulso, ao que ele responde:

 

— Xá dá um trago.

 

Vendo sua aparência, a boca envolta de feridas e o mal cheiro, respondi:

 

— Não leva a mal, mas é o único cigarro que tenho, a situação pra mim também não é das melhores; e sua boca toda fodida...

 

Me olhou balançando a cabeça vagarosamente para cima e para baixo, repuxando o canto esquerdo da boca e o olhar de quem jura a morte em segredo.

Ao dobrar a esquina seguinte, uma sombra se aproxima rapidamente atrás de mim, ao que sinto um golpe, um chute certeiro, atingindo com precisão, com a ponta do dedão do pé descalço, meu cu. Olho pra trás e o vejo correndo, atravessando a rua. Sem pensar, tomado de uma raiva cega e inconsequente, corro em disparada em sua busca; o alcanço e, dando um empurrão com o pé em uma de suas pernas, o induzo a despencar ao chão. Descontroladamente o golpeava com chutes em suas cochas; ele tentava se desvencilhar, afastando-se em movimentos com as pernas e as mãos espalmadas no chão, com os joelhos projetados para o alto, seu semblante me remeteu a de uma criança quando apanha dos pais; até que um de meus golpes, apesar de estar empregando pouca força, atinge suas costelas, ao que ele grita ininterruptamente.

 

Me dando conta do absurdo que o sujeito me envolveu, paro, o olho, estendo a mão e o ajudo a levantar. Tento amenizar a culpa que sinto, mostrando que a responsabilidade era inteiramente dele. Ele, ainda com trejeitos infantis e a cabeça baixa; me olha de baixo pra cima, com os olhos embotados em lágrimas, apenas choraminga.

 

Voltei até o botequim e comprei um maço de cigarros. Retornando ao local, com a intensão de dá-lo ao sujeito, não o encontro. Abro o maço, ascendo um cigarro e penso:

 

— Filho da puta, me fez voltar a fumar.

 

 

 

 

 

 

Antony
Enviado por Antony em 17/12/2024
Código do texto: T8221390
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.