Capítulo III - Atrapalhando o Trânsito

Dentro da ambulância, a caminho da UPA, ia Luiz metido consigo mesmo, de olhos fechados, escutando o barulho da sirene, enquanto em sua mente via a si mesmo rolar no fundo do rio, envolto em trevas, desesperado de voltar a pisar terra firme novamente e de respirar a maresia, no Cais de Santa Rita, desafogado. Agoniava-se. Comprimia as mãos e encolhia as pontas dos pés. Fazia uma moganga terrível, esboço do seu desejo violento de fugir àquelas imagens funestas que invadiam como inundação os seus pensamentos. Enfim, chegou à Emergência Hospitalar; foi submetido a exames clínicos a ver se estava tudo bem com sua saúde, ainda mais por ter ele engolido muita água do rio emporcalhada com dejetos urbanos. Podia-se dizer que Luiz estivesse, em geral, fisicamente bem, malgrado uns indícios de anemia e desnutrição. E apenas recebida alta médica, ele apressou-se a deixar a UPA o mais rápido possível, como quem foge de um pesadelo. Luiz sentou-se numa calçada ali perto, onde ficou algum tempo observando o vai e vem das pessoas e dos carros, das formigas no chão e dos passarinhos no céu.

Apercebeu-se então de que estava na Avenida Caxangá e de que não tinha forças para voltar andando para casa, para o seu banco na Praça do Derby. Foi aí que ele se decidiu por se esgueirar por uma das plataformas de embarque e desembarque de uma estação de BRT a fim de se meter dentro de um ônibus que o deixasse mais perto da sua praça. Entrou num ônibus e, como era de se esperar, notou na cara de alguns dos demais passageiros algo de desconfiança, medo, e até de nojo contra a sua pessoa; é que era visível a sua condição de mendicância. Mas Luiz não se abateu, assumiu, embora a custo, uma indiferença, uma apatia, que o habilitou a se espojar gostosamente em um assento na traseira do ônibus, onde acabou cochilando, embalado pelo trepidar macio do seu automóvel. Luiz despertou já bem perto da sua praça, onde enfim desceu e procurou o seu banco. Era quase noite. Em volta de si Luiz via multidão de gente indo e vindo, a maior parte dela seguramente fazendo o caminho de volta para casa, depois de um dia de trabalho.

De repente, Luiz escutou um barulho como que de batida de carros e notou que do outro lado da Avenida Agamenon Magalhães pessoas começavam a se aglomerar na esquina do McDonald’s. Luiz correu para lá, a ver o que se tinha dado, e quando se aproximou da aglomeração, viu estirado no asfalto, banhado em sangue, um dos três jovens com quem nos últimos dois dias havia cheirado cola.

Luiz ouviu um dos seguranças do McDonald’s dizer que o rapaz estivera revirando um dos lixeiros nas dependências do restaurante e que quando se deu conta de que vinham enxotá-lo, se assustou e correu desembestado para a avenida, onde foi fatalmente atropelado. O ruído de motores ligados e de buzinas inquietas começou a encher o ar, é que o corpo do mendigo caíra morto bem no meio do caminho, atrapalhando o trânsito. Luiz ficou impressionado com a cena dos miolos do seu colega espalhados pelo chão e perto do seu corpo um embrulho de lanche. A fome matara seu colega. Não o matara por inanição; matara-o na tentativa desumana de comer os restos de alguém; os restos sujos e babados de um desconhecido; os restos que ele não podia tirar do lixo sem se ver ameaçado de insultos e pancadas. A fome matara seu colega, enquanto ele fora poupado para assistir a esse espetáculo da indigência. Luiz chorou.

Davi Felismino de Souza
Enviado por Davi Felismino de Souza em 17/12/2024
Reeditado em 17/12/2024
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