Tina
Imagina-te escrevendo, publicando; aclamam-te, vêm a tua porta perguntar-te, interessam-se por ti; imagina, como não incrível seria? Há tanto que não escrevo um conto. Está decidido, vou escrevê-lo. Esta história é sobre o que vejo, o que ouço, talvez até sobre o que sofro, não sei ainda muito bem, mas aguarda-te, que já escrevo. Enfim, há tempos também que não denuncio nada, e o motivo é claro, estive ocupado um tanto. Porém, agora dedico-me a esta história, não me responsabilizo pelo que pensarás, que não estou aqui a agradar-te, faça-me o favor. Começando: Ela virava a esquina, sim, Ela, sempre fora Ela e não Ele. A esquina estava escura, mal-iluminada. Aqueles mosquitos “Aleluia”, acredito, sobrevoavam a tentar alcançar a luz do poste, protegida pelo vidro à sua frente; pequenos tolos. Lembrava-se de sua infância, árdua que só, cheia de ‘aleluias’ também, odiava-os por isso. Estavam lá e nada fizeram, podiam ter clamado a deus, que é só o que se deve fazer quando se chama “Aleluia”, não sei, desconfiam-me esses ‘aleluias’, alheios à barreira que impede seus objetivos; também não importa, voltemos à personagem: Tina lembrava-se de seu pai, fê-la sofrer em suas ásperas mãos, chegava a ser cômico o tanto que lhe batia, era de roxear depois, e falava: “Faz de novo, inferno!”; e depois: “Olha, Tim, desculpa o pai.”, em voz calma de aleluia. Tamanha dissimulação! É tão vil quanto bater em criança, não se pede desculpa após o leite derrubar. Desculpe-me, leitor, é que me irrita tanta injustiça, mas eu bem que te avisei, não foi? Voltando: Esse seu pai era cidadão de bem na rua, em casa também, exceto quando lhe espancava, quando ainda era Ele, embora nunca fora. Sentia saudade apenas do lado bom, é claro. Só começou sua transição quando o pai morrera, que em sua mente não queria dar-lhe o desgosto de ser ela mesma, e sua mãe, que deus a tenha, falecera bem antes, de tristeza. Olha, que já me perdi de novo, mas não é culpa minha, é que não sei separar meus personagens de mim e acabo experimentando eles, que é para escrever-te melhor, doutrinar-te melhor, entender-me melhor. (É que adoro Tim Maia, escrevo este ouvindo-lhe). Virou a esquina escura e deu de frente com o colorido do cabaré; logo ali ficava, era sua fonte de renda desde que começara a lutar por si mesma, não tinha muito mais o que pudesse fazer, não ia bem nas aulas porque divagava pensando em quem era, ou se era alguém. Não é culpa dela, é que ela é escrita por mim. Acabou-se assim, pois para trabalhar tinha que ter pelo menos acabado a escola, e nem ler sabia muito bem, infelizmente, vendia-se então. Nem achava tão ruim para falar a verdade, no bar havia muitas garotas como ela, sentia-se livre para finalmente conversar de igual para igual, só ali sabia fazer isso. Entrou; luzes vermelhas, bebidas, homens velhos e pervertidos, muitos com pinta de grão fino e aliança no dedo; a noite passou como uma criança. Engraçado, não? Nunca entendi muito bem essa expressão, mas uso-a mesmo assim, que quero abrir teu cérebro e enfiar-me dentro dele para que me entendas. O último beijou-a, não era muito comum, em geral, evitavam, que pensavam ser assim que pegavam doença. Burros! Na hora de usá-la não exitavam. Mas este beijou-a; via-o há algumas noites, ia ao bar algumas vezes, olhava-a dançar. Tina via-o, mas ele apenas bebia em sua mesa de canto e ia embora quase às 22h. Dessa vez não, beijava-a. Chamou a sair. Desculpe, leitor, avisei que era uma denúncia, e não literatura doce, a minha é amarga. No mundo dos artistas eu sou apenas um pombo-correio, um “jornalista”, um Aleluia. Ela foi, ganharia mais, pensava, e aquele sonho dos peitos de mulher estaria mais perto. A rua ainda escura, não deveria ser mais de meia-noite, e o homem beijava-a, beijava como se fosse sua última mulher, como se o mundo acabasse amanhã, como se a amasse. Foi isso que Tina achou, a mão desceu, ele teve o que queria, beijava-a, mordeu seu lábio, arrancou-lhe sangue, estavam deitados no chão da mata densa. Enquanto ele se satisfazia, ela admirava as estrelas. Antes de sua mãe morrer, ela contava-lhe que aqueles que morriam viravam estrelas, que as estrelas eram aquelas pessoas brilhantes que viveram na Terra antes. Que céu iluminado fazia! E os sons dos bichos então, melodia divina essa! Ela já não sentia mais muitas coisas, afundou-se há tempos na realidade; parca realidade esta que vos escrevo; em sua vida não havia espaço para lamentar-se, que as contas não se pagavam com lágrimas. Ah, me dá dó dela, mas preciso mostrar isto ao mundo, ou não também, não sei se gostarão de serem explorados pela minha ânsia de convencimento, não sei se vão deixar-me parasitar suas mentes como um verme que se alimenta de sua fraca presa, eu mesmo não gostaria. Que agradável a grama estava, nem penicava. Até esquecera o homem. O homem! Lembrou-se de gemer, olhou-lhe, chorava. Sentiu pena daquela alma em cima da sua, viu-se em seu lugar, lembrou-se de quando ainda tinha tempo de chorar, queria ajudá-lo, dar-lhe carinho talvez. E ele, chorando, agarrou a pedra. Na mão do homem tudo vira arma, é só olhar; somos todos vis, construímos nossos próprios problemas e depois sofremos com eles, somos apenas Aleluia batendo sempre e sempre no mesmo vidro, além de maus, burros. Levantou a pedra no alto como se levanta um troféu, e era. Bateu uma, duas, três, quatro, cinco, seis vezes. Na primeira a dor fora insuportável, tomou o espaço da compaixão, na segunda apagou-na, na terceira rachara seu crânio, na quarta desfigurou-lhe o rosto, na quinta esmagou-lhe o cérebro, e na sexta tornou-se Homem. Tina morrera, uma, duas, três, quatro, cinco, seis milhões de vezes. Morre todos os dias. Levantou, ainda sentindo prazer da noite com ela, o corpo dela estava intacto, seu rosto irreconhecível, ensanguentada, morta, ao chão, sob as estrelas que foram gente e assistiram a mais um espetáculo em sua eternidade impotente. Morta, e ele vivo, livre para matar mais uma Tina, afinal agora era Homem, mataria. Teria o que queria e depois mataria, que Tina não é mulher para se casar nem se amar, é mulher de usar e matar. No outro dia ninguém deu falta, no segundo também não, foi só no terceiro dia que, indo cobrar dívida na porta de Tina, deram-lhe o sumiço. Oh, deus, pergunto-te, por que é que somos assim? É tão injusto, se morremos a culpa também é sua. Acharam-na, o sangue já seco, a vida comia-lhe as entranhas, aproveitavam-se dela até na morte, a cabeça partida, que é assim que merece, quem foi que mandou deixar deus botá-la no mundo? Sua morte não significou nada, era só mais uma, ninguém se impressionou, exceto eu, que vim doutrinar-te. E nada muda, que morro todo dia do mesmo jeito desde que vi a primeira Tina morrer. Nada mudou, espero que mude, mas não tenho muita certeza, ainda desconfio dos “Aleluia”. Se não escrever mais é que racharam-me o crânio também.