DOIS NOÉIS
Sentimentos às vezes são ridículos e pode nos levar a ridículos comportamentos, assim como são ridículas as cartas de amor.
Afeto, empatia, desejar o bem ao semelhante, ternura, carinho, são expressões de nossa humanidade que guardamos n'alma e que nos impulsiona para o desenvolvimento espiritual.
E na época do Natal esses sentimentos afloram com maior energia.
É quando recordamos o dia em que o Filho de Deus veio para nos salvar através do amor ao nosso semelhante.
Assim, nesta época, tudo o que é expressão do amor não é exagero.
Nem ridículo.
Salvo algumas situações.
E nos metemos numa delas.
Há alguns anos, em data próxima ao Natal, fomos aos Correios postar alguns cartões. Naquele tempo ainda se postava cartões natalinos.
Enquanto eu os despachava, Eliezer ficou a remexer dentro de uma caixa que os funcionários colocaram na entrada.
Eliezer, para quem não sabe, era um parente próximo que vivia em minha casa, e de comportamento um pouco estabanado. Hoje ele está no andar de cima.
Quando terminei, chamou-me e pude ver que eram cartas endereçadas ao Papai Noel.
Os Correios tiveram a idéia de compartilhar com o público os pedidos que recebiam, formulados e endereçados ao bom velhinho.
Sonhos que estavam a espera de alguém para realizarem-se.
Escritas por crianças, o conteúdo revela a ilusão de Natal.
E a preocupação de muitas delas com a própria realidade.
Apanhamos algumas.
Valia a pena concretizar alguns sonhos.
Descartamos pedidos de celulares, de emprego, e aqueles que não podíamos realizar.
Assumimos cumprir quatro desejos.
Dois de brinquedos.
Uma menina que queria uma boneca "com cabelo de verdade", porque estava farta de brincar com boneca careca.
Um garoto que desejava um monstrengo exibido nos cinemas.
E dois outros.
Uma criança que queria um panetone. E outra que gostaria de comer peru, bicho que ela conhecia só da televisão.
Para cada, acrescentamos uma cesta de alimentos.
Fizemos as compras e transformamos nosso carro em treno de renas e ...
Oh! Oh! Oh!
A menina da boneca cabeluda ficou feliz ao receber o nosso presente.
E ficamos felizes em presenteá-la.
Não encontramos o endereço do garoto do monstrengo. Por certo, mudara-se para o planeta Zork.
Depois, numa casa sem reboco, com um veículo velho semelhante a um automóvel na garagem, batemos palmas.
Muitas palmas.
Lá dentro, uma dupla de cantores sertanejos, em alto volume, gritavam uma música sem poesia.
Chamamos "ô de casa!", várias vezes.
Eliezer sugeriu que jogássemos um tijolo na janela.
Por fim, veio nos atender uma mulher com um cigarro numa das mãos e um celular na outra.
Falava ao aparelho e não interrompeu o namoro.
Perguntamos se ali morava a criança que queria um panetone.
Com dificuldade respondeu que sim, mas que ela não estava em casa.
Entregamos nosso sonho.
Ela jogou a guimba do cigarro e agarrou a nossa boa ação.
Voltou para dentro de casa sem nos agradecer e nos abandonou na calçada.
O outro endereço era perto.
Casa semelhante, com parabólica fincada no jardim.
Havia silêncio.
Batemos palmas.
Gritamos "ô de casa!".
E consideramos desnecessário lançar um tijolo na janela.
Os moradores estavam fora.
Eliezer sugeriu que depositássemos os mimos na varanda, junto à porta de entrada.
Argumentou que a família, ao retornar, ficaria feliz em encontrar nossos donativos.
A idéia tinha o benefício do anonimato e alimentaria a ilusão da criança de que Papai Noel visitara a casa na sua ausência.
Entre a calçada, onde estávamos, e o lugar aonde Eliezer depositou os presentes, havia uma distância de dois a três metros.
Eliezer corre bem, Graças a Deus.
Também, Graças a Ele, mantive atento o portão entreaberto.
Lasso, assobiando "Dingo Bel", Eliezer depositou os pacotes junto à porta.
Arranjou tempo para equilibrar o peru em cima da cesta.
Esfregou as mãos de satisfação pelo seu trabalho.
Era o sinal e a ocasião que o f.d.p. aguardava!
Junto à parede do fundo, primeiro ele mostrou o focinho.
Negro, lustroso.
Depois exibiu dentes afiados.
Rosnou.
Meus cabelos eriçaram.
Os de Eliezer saltaram da sua cabeça para o solo e correram para a rua antes que ele próprio começasse a se mover.
Como no desenho animado do Pica Pau.
O cão começou a avançar devagar.
Olhos assassinos.
Boca espumosa.
Depois saiu chispando, levantando terra com as patas.
Malandrão, fez toda esta cena para ofertar vantagem a Eliézer.
Não estava interessado em carne humana.
Eliezer passou por mim e bati o portão.
O cão chocou-se contra a grade.
Rosnou feroz, mas era jogo de cena.
Após o quê, perdeu completamente o interesse por nós.
Voltou-se abanando o rabo, cheirou os nossos donativos e abocanhou o peru.
_____ Canalha!
_____ Veja como está gordo! Este cachorro come peru todos os dias!
Injuriado ordenou-me com o dedo:
_____ Vai lá buscar de volta o nosso peru!
_____ Nem morto! - Respondi.
E voltamos para casa.
Para nos restabelecer paramos num bar de nome "Último Gole".
E porque é Natal, pedimos vinho.
Fomos servidos com algo que tingiu os copos de vermelho.
No bar vazio, apenas uma mulher nos olhava curiosa.
Derrotada, unhas e boca vermelha.
Eliezer relaxou, pavoneou-se, colocou no rosto o seu melhor sorriso, assumiu ares de galã mexicano e modulou romantismo na voz:
_____ Bonequinha linda!
Ela acusou recebimento ao inesperado elogio.
O galanteio renovou a sua face.
O sonho devolveu a ela a beleza que há muito perdera.
_____ Obrigada!
Mãos nos lábios não conseguiram esconder falhas nos dentes.
Eliezer foi ao seu encontro e entregou o mostro de Zork e a cesta de alimentos.
Ela retribuiu com um abraço e desejo de Feliz Natal.
Repeti o gesto e brindamos com o vinho.
E fomos embora.
Logo, uma acidez repentina no estômago avisou que o nome do bar, "Último Gole", não era uma referência a sua localização geográfica.
Era um alerta para a má qualidade da bebida.
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Araçatuba-SP
Dezembro de 2024.