Qualquer Um.
Um pretinho qualquer, baixinho, cabelo crespo e do tipo muito magro; era assim que o viam na rua, apenas mais uma pobre criancinha. As crianças são, em geral, muito belas; não pela beleza exterior, essa execro em demasia nelas todas, mas sim por dentro, em seu jovial significado amplo de meninice; não sabem que, dentro de si, cabe um mundo inteiro, e todo tipo de mundo cabe; um dia perderão esse mundo e deixarão de ser bonitas, serão pálidas e decrépitas como nós, e me incluo também, porque sou a representação maior do que é sem-vida, escrevo e desescrevo como acho que devo, pois em mim já deixaram de caber há muito, quase não me cabe aqui também.
Ele desce a rua do morro todo gingado, balançando os braços para lá e para cá, dançando a sinfonia dos marginais; a massa preta de transeuntes nem o nota, o cansaço do dia, do metrô, dos dois ônibus até chegar à favela, do serviço pesado e mal pago, os carrega o mais rápido possível ao conforto do lar, passam pelo pequenino quase cegos em velocidade, as pernas já totalmente guiadas pelo constante monotônico de percorrer os mesmos passos todo dia até o barraquinho mal terminado, para essas pernas ele é invisível. Furta um, rouba outro, as moedinhas brilham no bolso esquerdo do moletom, fazendo um pouco de volume e peso; as notas, já mais valiosas, ocupam o bolso da calça, e o que lhe chamasse a atenção, do outro lado do moletom trapeado. Rouba sem piedade os trabalhadores, pois é seu direito, que lhe roubaram uma vez seu mundo, e uma criança não sobrevive sem mundo.
O sol vai baixando enquanto ele trabalha, a favela começa a mudar de rosto, o negrume das casinhas alonga-se, o barulho dos favelados em suas casas já contracena com o bafo quente da noite, enquanto o fluxo de gente diminui, e daqui a pouco é hora do jantar ali na espelunca do Seu Dodô. A ele não se era para roubar, não, sempre era bom com a molecada, sobretudo com o Pedrinho, às vezes lhe dava até um desconto na comida ou uma balinha para saborear. A verdade é que o velho conhecia bem o passado do pequeno, sentia pena daquela alminha, jogada há tanto na rua de terra da favela, condenada ali a sentenças que não lhe pertenciam, que não lhe cabiam, mas sim ao bom morro, culpado de tudo. Dodô sabia que seus pais faleceram ainda jovens e que, fora eles, o menino não tinha mais ninguém no mundo, e que seria, sem misericórdia da vida, parte intrínseca daquelas ruas; o pai fora morto pela polícia: era um homem alto, preto descendente de rei, voltava do serviço quando o pararam; ele não cooperou, e quem não coopera morre, principalmente se é suspeito de voltar de doze horas de muito trabalho, esses não passam de jeito nenhum. A mãe faleceu de overdose, logo depois do pai; o velho sentia pena do menino, mas não podia fazer muita coisa, era só um velho dono de bar.
Pedrinho já ia jantar quando avistou uma última vítima a subir a ladeira; se preparou, utilizando a seu favor as sombras das casinhas, foi ao encontro do homem, e mais de perto já o enxergava: branco e loiro, e, embora vestido com roupas engraçadas e um pouco largas demais, dissonava dos outros que passaram, não parecia ter mais de vinte anos e, ao contrário dos alvos habituais, não cheirava mal e vinha calmamente na direção do garoto. Cruzaram-se. O pequeno logo tratou de enfiar suas pequenas garras no bolso da calça do homem, porém, como se, pela primeira vez, as pernas o enxergassem, de súbito o homem segurou-lhe a mão. Seu Dodô, que via toda a cena, encolheu-se atrás do balcão, era dono apenas do balcão, afinal. Pedrinho, surpreso com o que acontecia, tentou correr, mas não pôde, estava seguramente preso.
— Solta! — disse o homem. O menino obedeceu, o tempo na rua lhe ensinara que não se pode brincar com o perigo, e, de toda forma, não havia muito o que fazer, era indefeso, uma criança. Continuou:
— O que ‘cê tá fazendo, em, moleque?
— Oh, tio, me solta aí, por favor, eu só queria um trocado.
— Por quê? Onde estão seus pais?
— Tenho não, tio, já morreu tudo.
E o homem não soltava, na verdade, agora pensava, sua mente borbulhava! Digo-vos que as ideias não são nada boas, exceto ao próprio homem, a ele tudo cairá como uma luva, e, se persuadir corretamente este pobre menino, o que não será muito difícil, visto que o faz muito bem, como veremos a seguir, será um homem muito sortudo. Segue:
— Se liga, garoto — e retirou de dentro da engraçada bermuda uma arma, daquelas de verdade, não se engane! — Por você tentar me roubar, e, já que nessa noite estou muito bonzinho, ‘cê vai subir o morro comigo.
Pedrinho, que sabia bem o que tudo aquilo significava, temendo por sua vidinha medíocre, assentiu com resignação. Seguiu, sob a mira daquela besta de ferro, o homem até seu barraco. Passaram por vielas escuras, que eram, na verdade, lares, pois abrigavam aqueles que apenas se aproveitavam da noite, emergidos sob a luz da lua, com seus cachimbos, em posição deplorável: aninhados ao chão, sugados pelo vício da favela até se mesclar àquela terra lamacenta sob si, banhada pelo esgoto que corria ali mesmo, ora de cócoras, dando tudo o que tinham somente para poder tragar e retragar o último suspiro ao cachimbo; a subida era ingrime, quase vertical; Pedrinho costumava evitar os pontos mais altos do morro, pois sabia que naquelas encruzilhadas, femininas e masculinas, os malandros bons eram quem comandava; digo, não tinha medo da encruzilhada, a velha e boa encruzilhada que abre os caminhos dos meninos maltrapilhos e famintos, não, tinha medo dos bons malandros, dos baianos de peixeira brava, não se metia com os maiores; o engraçado, pensava, é que, coincidentemente, era um desses malditos quem o escoltava morro acima, podia ser cômico, mas gelava sua espinha, que ao invés da peixeira e da navalha, quem lhe metia a mão na nuca era mais perigoso, não cortaria, estouraria.
Eles caminham para cima, passam por toda aquela gente favelada, gente cansada. Encontrava em sua vista também os homens águia, águia em falta de sinônimo melhor: vestidos de preto, em cima dos morrinhos de terra, ora em cima das construções inacabadas, portavam, no lugar do bico, uma bela arma, bem exposta, para intimidar qualquer outro passarinho que passasse, sobretudo os que não pertencem ao morro, mas sim aos grandes centros urbanos, que andam de blitz ao invés de voar no céu; alguns ainda sobrevoam, mas com asas mecânicas e barulhentas; estes não, são mais sorrateiros, preferem o sombreado da noite, se denominam morcegos, e caçam quem deve o néctar do mês; não era um revólver, esse ele sabia bem o nome, até demais, já que se encontrava um ao seu pescoço, não, essa era outra, por isso águia, seu bico era maior, mais rígido também, embora pudesse ser mais facilmente um abutre, um urubu, o qual é mais característico do que ronda a grande favela quando sai o povo à rua, quando se lançam também os zumbis, corrompidos pelo produto do morro, atrás de mais cérebros, estes estão na vista do abutre o tempo todo, mas faltavam-lhe estes sinônimos, portanto águia.
Viraram uma aqui, outra ali, abriam-se mais e mais os conjuntos de barraco, e, ali em cima, finalmente chegaram a portinha de ferro, pendurada por uns pregos mal colocados, e adornada, em seu interior, com uma manta mais colorida. Abriram e entraram. O espaço era um pouco diferente do habitual; não que haja algo tão habitual a Pedrinho quanto a calçada de grama seca, é só que imaginava que, por dentro das casinhas, fosse menor. O homem mandou-lhe sentar à mesa, o menino o fez. Daí por uns instantes o homem sumiu adentro, despreocupado com o que faria o garoto sem tutela. Mas o que ambos deveriam imaginar, é que dali sairia algo bom, pois o garoto nem se mexeu. O homem voltou com um pratinho de comida, já um pouco fria, e entregou ao menino. Pedrinho comeu. Como era gostoso saborear algo que não apenas salgados ou empadinhas. Como era bom aquele arroz e aquele feijão, mesmo que humildes, traziam um pequeno continente ao menino, que já esquecera os eventos anteriores ao que se seguiu. Às vezes a fome ora a necessidade superam rapidamente um disparate, mesmo a maior humilhação, se forem muita.
O homem, com toda a dissimulação que tinha, começou:
— Então, menino, qual teu nome?
— Falaram que meu nome é Pedrinho — respondeu de boca cheia.
— E ‘cê mora há quanto tempo na rua?
— Não sei, tio, nunca morei em outro lugar.
— É falta de educação não perguntar o nome de alguém após dizer o seu, sabia?
— Não.
— E não vai me perguntar?
— É só perguntar?
— Sim.
— Então, qual seu nome, tio?
— É Daniel, mas para todo mundo é Alemão, se ligou?
— Acho que sim, então é para te chamar de Alemão, tio?
— Sim.
— Tá bom, tio.
O menino terminou de comer muito rápido e largou o prato, então seguiu-se:
— Essa noite você dorme aqui, amanhã vamos comprar umas roupas para você na Neide.
O homem pegou o prato e levou à pia, chamou o garoto e levou-o até um colchão jogado ao chão. Nessa noite dormiram sem mais acontecimentos. No outro dia, sucedeu-se que Alemão cumpriu com o que prometeu e trouxe roupas melhores para o menino. O pôs na rua, logo às dezoito horas, momento em que a favela se enche de gente, e mandou-lhe observar o fluxo, sem que pegasse nada de ninguém, disse que às vinte e uma viria buscá-lo. Dito e feito, mais uma noite garantida na casa do loiro. Faria assim novamente se em troca de comida quente e cama macia, entregaria mais e cada vez mais por aquilo o que não tinha, era seu direito, é direito das ruas.
Por uma semana, tudo correu da mesma forma: o garoto ia para lá, ficava um tempo, voltava e tinha casa e comida. Alemão, no final desses sete dias, fez-lhe a seguinte pergunta:
— E então, garoto, o que você vai fazer? Ficará comigo, e será meu para sempre, ou voltará às ruas?
Um susto, um assombro, que seria aquilo? Não ficaria facilmente? Ora! Teria tudo o que precisasse ali, por que hesitar? Mas as suas palavras agora lhe traíam, mudo; um fio, sim, um fio escuro lhe consumia o ventre, subindo ao corpinho negro, gelando-lhe a face. Logo ali, em pé à frente do homem, paralisado, não pensava, os pensamentos sumiram-lhe, assim como as falsas verdades também da boca. Que faria? Um lapso de segundo, a vida de uma mosca, era o que precisaria. Ou não, precisaria de uma vida inteira, uma nova, com novos segundos, novos lapsos, até poder responder. Olha-lhe a boca rosada, a cara intrigada, em busca de resposta; a primeira vai se abrir; não pode, não, não poderia e não pôde, não ali na hora. Uma vida? Do frio ao rubor, um calor, uma necessidade, os movimentos retornam. Que faz uma mosca quando acuada? Foge. E fugiu. Rápido, lépido, misturando-se às sombras da noite, aos eguns vagantes, aos perdidos. Mas tinha tanta certeza, tanta necessidade, por que não ceder? Passa pelas casinhas voando, sobe os degrauzinhos, escorrega no lodo do esgoto. Foge, mas para onde, de quê? Da dúvida, certamente. Mas tão jovem, como duvida? Pode? Um viciado aqui, outro ali, estão em tudo, infestam o lugar. Uma casa, sim, uma casa, não furta nem sofre em uma casa. Os outros menininhos não, mas e ele? O fôlego falta, a cabeça gira, a visão turva, para, senta.
Mas qual é a dúvida? Qual a relutância? O que o impede é aquela vaga lembrança, aquela futura ideia, de sua mãe, no corpo de outra, indo à sua porta pedir-lhe mais uma pedra, mais um trago. Não quer tragar o intragável, é horrendo. Vai destruir vidas como destruíram a sua? E os bebês, e as crianças? Onde estaria sua garantia de sobrevivência com uma mãe cracuda passando-lhe também às ruas quando morrese. Já não bastava ele? Já não era muito uma única criança estar ali? Como suportaria o peso de destruir aquilo o que desejava que não lhe tivesse sido tirado? Qual é seu preço? Uma casa.
— Tsiii! Ei, menino! — Ele olhou, era Alemão. — Por que tu correu, garoto?
O menino ainda com tantas interrogações lhe acusando não poderia responder.
— Hein, garoto? — E o bandido se aproximava.
Pedrinho ofegava, estático, com olhos negros marejados, que denunciavam sua magnanimidade em sentir medo. O loiro foi se aproximando, percebendo tudo aquilo, deve ter imaginado algo, porque abraçou forte o jovem, retendo-lhe em seus braços, apertando-lhe contra si. Pedrinho, que nunca sentira nada parecido antes, de súbito parou. Parou e estranhou. Por um tempo ficou a entender, mas depois deixou-se estar, desretraiu-se, relaxado. Quente, era quente como a favela, e a blusa era macia. Mas o peito, o peito misturava-se consigo em uma união puntiforme, subtraia-lhe todos os anseios. Era gostoso o carinho, deveria ser esse o significado da palavra, talvez agora desmistificada. Deixou-se estar, e tudo foi sumindo enquanto se afundava no novo, enquanto experimentava o desconhecido. Afrouxavam-se antigos sentimentos e abrochavam-se novos no lugar. Era a primeria vez que alguém lhe segurava tão perto, tão firme. Pedrinho fechou os olhos e sentiu algo como uma segurança bandida instalar-se em seu peito, e em instantes, as cicatrizes do mundo pararam de doer. O que caberia naquele abraço senão seu mundo, talvez o tivessem guardado ali, e ele, como um pirata em busca de seu tesouro, finalmente o achara. Ou seria aquilo a casa que lhe era oferecida? Sim, sua casa era ali, dentre aqueles braços, onde não se precisava ser nada, nem correr de nada, era só estar. Queria que aquele momento se estendesse para sempre, que nunca mais tivesse que sair dali. Era aquilo seu anseio? Esse seu preço? Mas é tão bom estar; sente-se verdadeiramente amado em um abraço, um beijo é fútil perto dele, não pode reunir dois seres e transportá-los a algo tão maravilhoso quanto o sentido de lar, não. Escolheria o abraço mil vezes se pudesse, e daria, sim, tudo em troca dele, suportaria tudo por uma chance de novamente tê-lo, mesmo que minúscula, pela inteiridade que se sente ao ser abraçado, pela completude amórfica que preenche o mais ínfimo ser. Quem seria agora após aquele abraço, após experimentá-lo? “Você é mais forte do que pensa, moleque.”, sussurrou-lhe o homem, e então, agora o para sempre exigia-lhe uma resposta.
O menino decidiu ficar, já que, na rua, sabia que não teria aquilo. Ficou, e com o tempo, os planos de Alemão para o garoto tornaram-se mais claro, faria dele não só a sua imagem, mas também a do morro, o produto dele. Primeiro fê-lo olheiro: com esse cargo destacou-se bem, conhecia os transeuntes da favela, embora houvesse muitos; entregou quem devia, localizou quem pôde e cumpriu bem o seu papel. Passou a aviãozinho: agora era como os agentes de campo que via regularmente nos filmes que Alemão lhe apresentava, quando se juntavam para assistir alguma coisa após um dia longo de entregas, compravam alguma comida e alugavam um filme, e era legal imaginar como tudo o que havia naquela tela parecia-se um pouquinho com sua vida. Depois, traficante: aqui se destacou, já tinha mais idade e não precisava mais se expor à rua, tinha um ponto fixo e sabia bem como se fazia o trabalho, se lhe deviam, mandava aos abutres que sobrevoassem bem o esconderijo dos ratos, e se o despeito viesse à mão, com elas mesmo é que o resolvia; e tudo o menino fazia.
Estabeleceram-se laços, formou-se família, e o menino crescia; não só de tamanho, mas também no crime: via naquela vida uma brincadeira menos séria do que é viver, e era uma diversão que o homem que o tirou das ruas estivesse consigo, via nele um general, um amigo, um companheiro, quem sabe enxergasse nele até um pouco de seu pai, embora não o tenha conhecido, e soubesse que suas maçãs negras não poderiam ser fruto senão de outras maçãs tão negras quanto as suas; e a pele alva de Alemão, se o tivesse realmente gerado, não lhe conferiria aquela aparência retinta, de rei da favela, tão característica no morro, e que tanto lhe simpatizava; nascera para aquilo, para aquela pele, para aquelas ruas, para aquele caminho. Não havia motivo para não trilhá-lo, não deveria mesmo ter também duvidado de que deveria fazê-lo, já estava há muito ali, cresceu naquilo, e seria, caso necessário, parte dessa vida para sempre. Diante de seus olhos, estabeleceu-se todo um mundo novo, que não cabia em si, mas estabeleceu-se consigo. Toda uma vida nova, sob outro olhar, outra perspectiva, ergueu-se diante de si, e como um leão atrás de sua presa, Pedrinho agarrou-se a isso. Esse mundo agora era dele.
Alemão passou a vê-lo também como um filho, um molde seu, e lhe tinha muito orgulho à sua criação, sua propriedade. Fora seu mestre e cuidador até a maioridade, depois disso, era Pedrinho quem arranjava as coisas, conquistara poder e reconhecimento entre os habitantes do nicho; agora estava acima daquela massa preta de transeuntes de outrora, não fazia mais parte do povo, subiu, ascendeu, tornou-se parte do morro, senão o próprio, e não mais parte da massa. Agora, ele e a favela eram só um, tudo estava sob eles, podia sentir suas janelas se abrindo e suas portas fechando, cada pequeno tijolo era uma parte do seu ser, e nas ruas, agora corria o seu sangue, como grandes artérias de complexidade inigualável. Seria finalmente dono de si e de todos, de tudo, de um mundo, o que é muito para quem nunca teve nem mesmo uma corrente de vida dentro de si, que deságua ferozmente na fogosidade da mocidade, faltava-lhe um pouco disso também, pois já era considerado muito pálido e decrépito, sem vida, embora tivesse muito em troca; e também não poderia sentir falta de algo que nunca teve, teve corpo de criança, mas em alma sempre fora grande demais, tanto, que teve de engolir a de todo o morro para se satisfazer. Fez, como alguém faz em seu próprio corpo, mudanças boas e ruins, geriu aquele espaço como achou melhor, de modo que as crianças pudessem ter seus próprios mundos dentro de suas ruas, e quem não respeitasse isso perderia sua parca vida, pois é direito que respeitem as crianças em sua comunidade; usava agora roupas largas e engraçadas, que combinavam bem com sua outra parte, suas vielas e barracões, tudo era síntese de si próprio. Nos seus muros, como em seu coração, picharam “Respeitem as crianças”, e a porta dos seus dentes se abria defronte a vista, e revelavam-se brancos como a vendinha de Seu Dodô.
Entretanto, nesse mundo, no descolorido, que não nos cabe, existem dois lados: o daqueles que matam e o daqueles que morrem. Invadiram-no, subiram suas ruas com grandes carros, metendo tiros naqueles que não saíssem da frente, chegaram ao topo do morro deixando um rastro de morte atrás de si, procurando por ele, mesmo que já o tivessem encontrado na porta da favela, mesmo que um pouco já o tivessem matado. Encontraram-no e abriram fogo, os abutres em nada ajudaram, caíram tão rápido quanto se ergueram, o barraco ficou todo esburacado, e se o barraco está esburacado, Pedrinho está também. Era filho daquelas ruas, pai daquelas casas, parte daquele espaço, e o morro não o esqueceria, o morro fizera dele quem ele foi. E podem questionar o que o morro fez, mas se faz consigo de ti o tempo todo, a diferença é que a favela e Pedrinho eram grandes, mas faz-te da mesma maneira. Abriram fogo, e Pedrinho cedeu, e Pedrinho se foi; era ladrão, não era ladrão, quem há de dizer? Fez tolices, sim, mas o que conhecia senão a tolice, o que conheceu senão o crime? Como seu pai ele morreu, como sua mãe ele viveu: embriagado de si. Vivia a favela, morria a favela. Quem vive e quem morre? Quem decide? Quem é que estava certo? Eu não sei, mas Pedrinho, depois que os homens subiram-lhe, voltou ao que era, cessou-se o gingado. Já não havia mais mundo de ninguém, antes havia, antes funcionava, se estava na parede é que era verdade, mas agora não, que de um Pedrinho que veio a tornar-se o morro, surgiram mil que não se tornariam nada, que agora estavam nas ruas de Pedrinho, sem nada para ser, pois lhes roubaram, com as armas, seus mundos também, e nenhum deles seria parte do todo, nenhum deles seria o menino, apenas roubariam, que o crime não morreu, quem morreu, atente-se, foi Pedrinho, foi a esperança de que a favela se tornaria mais justa com a molecagem, foi a vida da favela que morreu, morreu sem abraço.
Desceram da encruzilhada para saudar Pedrinho os baianos e os malandros, sentiram fortemente a perda, pesaram no âmago a falta da essência de Pedrinho, perderam quem lhes protegia os filhos, quem lhes garantia a gira, caiu-lhes a casa. Seu Dodô compadeceu-se muito, parecia-lhe que faltava algo ali, em frente a sua venda, um espírito triste agora lhe rondava, e arranhava-lhe o coração por não ter ido ao encontro de Pedrinho naquela noite quente. Formou-se em torno do morro uma atmosfera escura, escura mas leve, e a favela pulsava em resposta àquela união, respondia com as janelas fechadas, com as ruas ensanguentadas, com os corpos no chão, incorporando-se àquilo tudo. Nada naquela terra seria mais do mesmo, algo lhe faltaria, um mundo, talvez, que agora ninguém garantiria. Desceram procissões com velas, juntaram-se as canções das evangélicas, e os cânticos da mandinga limpariam as auras cadavéricas. A favela chorou e chorou, perdeu e perdeu, rezou e rezou. Tudo era Pedrinho, as casas, as ruas, a morte e a vida, a esperança, a falta dela, quem se compadecia. Exceto Alemão. Alemão é Alemão, e Alemão sobrevive; há quem morre e há quem mata, e o homem escolheu, agora era hora de mais um: passeia na rua, agora vermelha, percebe os meninos que nada serão, a menos que encontre mais um.
— Solta! — disse o homem.
E um novo mundo se abre a um desmazelado, um cheio de angústias, dores e morte.