Meu espelho, Teu.
Um sorvetinho, será que poderíamos tomar um sorvetinho, mamãe? Não. Mas é claro que não, não podemos tomar qualquer tipo de sorvete, você sabe não poder tomar nada com leite, depois dá-me trabalho! Sônia era meio pardinha, assim, que nem a mãe, com os olhos iguais aos do pai, negros como a noite, graves, grossos. Não era feia, as sardinhas lhe davam um ar especial, de rosto meio incomum, e as trancinhas lhe conferiam uma aparência infantil ainda, mesmo que já tivesse dezesseis.
Naquele dia passeavam ao shopping, buscando ali alguns produtos de cabelo e pele para a mãe, muito cuidadosa com a aparência, gostava de ficar muito emperiquitada para ninguém em especial, talvez a si mesma, visto que o marido já não a olhava mais, nunca a olhou, talvez, só quando quis consumir-lhe a carne. A mãe pensava isso às vezes e afastava o pensamento rapidamente ao jogar a cabeça para frente, dando movimento aos cabelos louros.
De repente, uma menininha mais pálida, com aspecto meio de morta, cara triste, que corria por ali, esbarra-se em sua mãe. Observava-a já vir meio acelerada em direção a elas, só não pensava que o pequeno foguete branco acertar-lhes-ia tão precisamente, derrubando todas suas compras no chão e, consequentemente, quebrando alguns frascos. A mãe, muito nervosa, Sônia sabia, segurava a criancinha pelos pulsos, erguendo-a do chão. O sermão apenas começava quando a mãe do foguetinho chegou, demandando explicações do porquê de tanta cólera, explicando que a criança provavelmente não deveria ter consciência de tamanho estrago. A mãe de Sônia, com a língua muito afiada, formada na Academia da Moralidade e do Esculacho, criticava a maneira de criar da outra, desferindo-lhe muitas repreensões seguidas de indecorosidade, expulsando-a juntamente com a filhinha pequena, que fugiam de tamanho vexame.
Sônia não pensava muito nessas situações, se pensasse, formasse algo como uma opinião, guardava a si mesma, para que pudesse mais tarde molestar o fio da própria consciência. Não era a primeira vez que isso lhe acontecia, acostumou-se a fazê-lo sempre que suas opiniões dissonavam das boas reprimendas da mãe, por isso as guardava em caderninhos. Se expelisse tais pensamentos, teria que explicar-se a ela, e nisso havia dois problemas: o primeiro era que a mãe reprovaria com muita certeza todas as suas afirmações, usando de argumentos e exemplos da própria experiência, dizendo que as coisas haviam de ser daquele jeito, do seu próprio, afinal, não estaria nunca errada, já que criara a filha e moldara-a como bem-quis, entendia também que externalizações de tais contrariedades eram sinais, para a mãe, de que a filha estaria apresentando algo que ela execrava em demasia, rebeldia, e isso apenas lhe incitava mais a dissuadi-la daquilo, aliená-la, no objetivo de mantê-la longe de tamanho mal. O segundo era justamente ter que explicar-se, não sabia usar as palavras para entender-se à outra, nem mesmo costumava falar, contorcia-se de vontade de abrir a boca quando falavam de algo que ela conhecia bem, que dominava, mas tinha medo que faltassem essas tais sílabas ajuntadas bem quando mais precisava, e então calava-se; fora capada da capacidade de usá-las, assustavam-lhe seus adornos, difíceis de pronunciar, embora lindos; via como podiam ser armas, a mãe usava-as assim, com grande maestria; não as utilizaria, portanto, as guardaria para mais tarde, as escreveria para não perder, verbalizá-las era muito perigoso.
Terminado o passeio, voltando sem o sorvete para casa, Sônia passou ao seu quarto, fugindo da enorme briga que se instalara na cozinha, entre papai e mamãe. Fora escapar daquela atmosfera e refugiar-se em sua própria. Dali saltou-lhe bruscamente a rebeldia guardada, aquele pensamento pouco inocente e muito pensamento, assaz, melancólico, de alguém que pela primeira vez compreendia toda uma situação. Escreveu, possuída pelo espírito da audácia:
“Esse rosto, esse rosto resignado, em que pinto um sorriso barato, falso, meio amarelado, eu o odeio. Odeio nele tudo, fruto de um muito par cujo amor nunca existiu. Tenho os olhos de meu pai, pestanudos, graves, de expressão bárbara, vizinhos de grossas e escuras sobrancelhas; que mais fazem é me trair, é de seu caráter, é tudo de exímio cinismo. Minha boca os odeia, são frívolos, a maltratam, só porque ela se encontra abaixo deles. Mas essa boca carnuda e rosada que tenho, tão de minha mãe quanto minha… Ah, essa boca machuca, é uma cobra; seduz e depois morde, vermelha e doce como um morango, no exato ponto em que ele lhe engana e lhe azeda a língua, tão gostosa e desejável, é uma mentirosa: vos conta falsas verdades, manipula, cala e se cala; no final, engole o que é dos outros.
E vai aí porque os odeio: os olhos, embora tão másculos, duros e inflexíveis, transbordam-me, novamente me traem, assim como a ela. Não os controlo, são agressivos comigo, me surram se é preciso, e choram, como eles choram ao pedir redenção! Tão oníricos, refletem-me a volúpia dos céus, não a quero, ele sim; só a deseja e lhe fita quem deve, eu não devo, mas olho; como ele eu me martirizo, me esbanjo e me arrependo, espanco e me arrependo, humilho e me arrependo, mas é tudo culpa minha, e pedir perdão não me livra do ato, e então eu choro. A boca, a odeio porque é muito esperta, ela mesmo é quem me guia, me subjuga, me domina e me controla. Não me serve de nada também, que ao invés de morder os olhos, não sei se lhe por consideração de anos lado a lado ou ineficácia, se dobram a ele, escondendo-se embaixo do narigão intrometido. Ela é falsa e rude, não tem modos, bebe todas aquelas lágrimas, salgadas em verdade; acha que todos lhe são menores, menos os olhos, se resigna a eles sempre, pobrezinha, tanto ódio, de anos, livra-te, vai-te embora!
Meu rosto, uma mistura de duas pessoas que nunca se amaram, uma farsa, um amorfo vil, demoníaco. Me olho no espelho e não me vejo. Os vejo apenas, quero apagá-los, que os saiam a imagem de mim, quero ser-mo, ver-me, sentir-me, e desfigurar-me-ei se preciso. Que me caia ácido no rosto, que me livrem de todo o passado que me contém e não é meu.
Mas e essa carne? Que tem embaixo desta minha carne? Habita-me deles também? É uma desgraça ser-vos, vos odeio por isso, desejo que saiam de mim agora, que me deixem em paz. Cortarei desta carne para dar-te de comer, porquanto, até aqui ela é minha! Livra-me disso, de você, dai-me eu, e recolher-me-ei em mim, sem ti, quebrarei meu espelho.”
Despossuída, lia o que escreveu, totalmente perplexa, cheia de volúpia de mais e mais autoentendimento, sem saber que o maior e mais exímio sofrimento é aquele de se bem conhecer, e um pouco chateada também, por não poder dizer tudo aquilo, certamente se enrolaria. Escondia já o caderninho vermelho quando a mãe apareceu na porta do quarto dizendo-lhe, à mania de falsa francesa, que era hora já de s’endormir. A menina gelou, por sorte a mãe não viu nada, não percebeu, e foi seguir as ordens da General Boca.
Noutro dia, ao sair da escola, pronta para tomar o ônibus, gritaram à Sônia uns meninos, atentando que ela fosse até eles. Ela foi, às suas maneiras leves e resignadas. Chegando ali, um pretinho anunciou logo o que era: queria que fosse com ele a uma sorveteria, para encontrarem-se como dois amantes apaixonados, e que ele pagaria o sorvete, pois era bom moço.
Os olhos da menina, como pedras negras ao sol, iluminaram-se. Não ligava para o garoto ou para seus interesses de adolescente, queria tomar sorvete. Morrendo de vontade, recusou, apenas com um acenar negativo de cabeça. Mas por que fizera aquilo? Seria ela uma boba? Queria muito, mas ocorreu-lhe que além de não digerir bem o leite, também não sabia tomar sorvete. Mas ora! Como é que não se sabe tomar sorvete? É simples, é apenas… Como é que se faz, morde? Lambe? Engole tudo de uma vez? O fato é que Sônia tinha vontade de algo que nem mesmo havia experimentado ainda, e o desejo corrompia-lhe a carne, era feita de desejos e hipocrisias.
Voltou ao ônibus pensando como é que a mãe sabia que ela não podia tomar leite se nem mesmo ela tinha certeza, nunca tomou nenhuma gota daquilo que fosse. Todos mentem a ela em casa? Por que fariam aquilo, inventariam uma proibição nova apenas para que ela não pudesse usufruir daquilo? Chocou-lhe o pensamento de pular do veículo em movimento e ir sozinha até a sorveteria descobrir à própria sorte se era objeto das maleficidades dos pais, de seu controle exacerbado. Puxou a corda que avisava a descida e foi, ainda chocada. Como é que poderia estar fazendo isso senão somente ao escrever em seu caderno, se revoltando dessa forma?
Caminhou embasbacada até a sorveteria mais próxima sem nem pensar no que faria dali em diante, sabia apenas de seu objetivo: alimentar aquela sua capacidade de desobedecer, resguardada há tanto dentro de si, confessada apenas às páginas envelhecidas do diário velho. Chegando lá, sentou-se à mesa e olhou ao rededor, observando os outros que ali estavam: uns levavam toda a pasta cremosa a boca de uma vez, subtraindo-lhe um pedaço; outros usavam uma colherzinha e mais alguns mordiam picolés de cores diferentes.
Quando veio uma mulher perguntar-lhe o que queria, ela travou. Abriu a boca, mas não saía nada. Aprisionada pela ausência. Impotente… Possuía a chama necessária para chegar até ali, mas quanto custaria quebrar a si mesma, despedaçar-se em alguém novo? Lembrou do caderninho, “quebrar o espelho”, precisa quebrá-lo, sem adornos, sem requintes, bruta, a palavra deve ser bruta!
Quero experimentar-me.