FOGUEIRA DO CONHECIMENTO
Direto de um tempo de repressão dos direitos civis, tendo como cenário uma ainda pacata rua lateral da principal artéria do bairro, na época única a cortar de ponta a ponta o bairro do Jardim Botânico.
Nessa história o protagonismo fica por conta das Forças Armadas, que ao invés de cumprir seu papel institucional de defesa do país, garantir a ordem e a segurança interna, proteger os cidadãos, os bens do país e participar de missões de paz internacionais e de operações de ajuda humanitária, prendia e muitas vezes eliminava cidadãos sem critérios objetivos.
Lembro que as Forças Armadas não podem interferir nos demais Poderes, a não ser que haja um pedido de alguma das autoridades dos três Poderes.
Uma cena insólita está se desenvolvendo numa calma rua do bairro, a constante correria de crianças que entram de mãos vazias num prédio, sobem suas escadas, entram num apartamento e retornam carregando livros, que são o combustível que mantém uma fogueira acesa por bom tempo.
Nesse momento livros podiam depor contra seus nobres leitores, a repressão militar resolveu unilateralmente que livros de história, sociologia e assemelhados podiam ser usados como testemunhas da ideologia de seus leitores.
Alguém fez o favor de espalhar pela rua, que inclusive contava com dois prédios de militares, e sequer respeitaram a legislação urbanística, uma possível busca de livros, que incentivavam a adoção do comunismo como desejo de consumo, foco voltado para a classe de professores.
Nesse apartamento onde ocorria a estranha movimentação, residiam seu Antenor professor de história da UFRJ e sua esposa dona Marina, que dava aulas de história no Colégio Pedro II, e claro, como todo bom professor dispunha de rico material para preparo de suas aulas, mas que momentaneamente tinha sido transformado em material subversivo.
Essa catarse literária se espalhou pela vizinhança, que assustada também desceu com seus livros para alimentar essa fogueira do conhecimento, afinal, na realidade ninguém sabia imaginar o que poderia ser considerado literatura subversiva, acredito que até os próprios militares escalados para o ingrato serviço.
Algum vizinho desavisado, assistindo toda essa movimentação na pacata rua, resolveu acionar o corpo de bombeiros, as labaredas permaneciam altas, com risco de se alastrarem pelas árvores, que até então produziam apenas sombra e muita folha nas calçadas, tirando a paciência dos faxineiros, que precisavam varre-las pelo menos três vezes ao dia.
Com a escandalosa chegada dos bombeiros nova confusão foi formada, enquanto a população queria acabar de destruir provas de uma possível irregularidade na concepção militar, os destemidos combatentes do fogo, gostariam de executar sua função histórica.
Uma viatura da polícia militar que passava pela Rua Jardim Botânico, estranhando a movimentação atípica, subiu a rua na contra mão, quase atropelando duas crianças, que indiferentes aos fatos, jogavam bola na outra extremidade da via, o que revoltou ainda mais os moradores, que passaram a vaiar esses atrapalhados agentes de segurança.
Ao final das contas, depois de muito vai e vem de negociações com autoridades, optou-se por levar adiante uma omissão coletiva. Bombeiros e policiais retornaram as suas viaturas e partiram silenciosos aos locais de origem, enquanto alguns moradores faziam uma espécie de reintrodução ao fogo de publicações que não tinham ainda virado cinza.
E essa repressão ainda permaneceria por mais de uma década, causando vítimas e cerceamento na produção artística, independente de suas características.