A Porta Branca

A porta, agora branca, era cheia de palavras; nomes e datas; apelidos e mensagens registrando minha passagem e a de amigos. Animada, tentei fazer uma foto, queria mostrar aos amigos novos, mas cadê o que estava ali? Pai pintou de um branco que apagou mais de 20 anos de história. Era o meu próprio parque de pinturas rupestres. Bom, eu fotografei a porta (agora branca) há anos e talvez ainda encontre em meu HD antigo. Que tristeza…

Outro lugar que também era local de registros, era a casa na roça, pau-a-pique, com muitos anos. Eu escrevia usando um pedaço de pau ou mesmo um prego; a parede cedia às tatuagens que eu julgava eternas. Meu pai rezou essa roça e ele próprio — na verdade uma senhorinha rezou. Disse que tinha muitas cobras por causa dos cajueiros, e rezando, elas se afastariam ou caso picassem alguém, não haveria problema. Problema: morrer.

Ele também dizia que no único quarto dessa casinha, morava uma cobra enorme, que de vez em quando ele ia lá e a via toda enrolada; dizia que a casa era dela. Um dia entrei no quarto rapidamente, pois estava com a porta aberta e vazio, saí antes que a cobra quisesse me dizer um “oi”.

Pai vendeu a roça, a casa logo foi demolida.

Já o meu quarto na casa da rua — é que chamamos de casa da roça e casa da rua — onde fica a porta branca, era indefinido. Cada vez que eu vinha passar férias, ficava em um diferente; geminiana. Também pensava que os quartos podiam sentir ciúme, então ficava de um em um.

Em algumas épocas, tinha medo do escuro e dormia com meu pai. Quando comecei a namorar, resolvi também escolher um quarto definitivo, agora eu era grande e madura. Estou nele.

Uma cama, um espelho, uma cadeira e o ventilador. Sempre foi assim. Não, por anos, me arrumei em frente ao espelho do banheiro, em cima de uma cadeira para conseguir alcançá-lo. O espelho no quarto veio tardiamente. Hoje tem uma cômoda, onde minha mãe põe suas roupas. Eu mantinha nas malas, era meu guarda-roupas. Desta vez foi até estranho ter onde guardá-las.

O leite retirado das tetas de alguma vaca, vem parar na geladeira de meu pai. Acordo, pego meu remédio, tomo. Bebo um cafezinho. Espero, converso com meu pai, ele diz algumas vezes para eu comer logo. Pego um pão no formato tradicional — porém bem menor e menos gostoso do que me lembro — e ponho mais café e leite — da vaca retirado de suas tetas.

Ontem lavei roupas no tanquinho. Lembrei que antes era "na mão" e com escova. Uma trabalheira, detestava. Hoje foi a coisa mais rápida e simples. Os 36 graus evaporaram a maior parte da água rapidamente. Retirei as peças secas e quem visse diria que estavam já passadas a ferro; o sol.

Também tive as velhas aulas de direção. Meu pai sempre me enrolou com elas. Nunca permitiu que eu dirigisse sozinha, mesmo sabendo que podia dirigir em uma estrada, pois ele viu. Enquanto isso, conhecidos andavam para cima e para baixo sem permissão oficial, com a coragem e a ousadia. Aos 32 anos continuo sendo enrolada.

De volta à roça: hoje observo por onde tanto andei e brinquei. As serras que subi, caí, me ralei, as cercas de arame que pulei e me cortei. O tanque que bebi água junto com as vacas; eu achava incrível. Hoje é diferente.

Meu pai vendeu quase tudo, pra onde olho, é de alguém. Nunca tem criança brincando. Às vezes eu voltava tão suja da roça que tinha que vir pra casa "pelas ruas de trás", para as pessoas não verem meu estado.

À noite, deito no meu quarto "de adulta" e olho o teto; é um telhado de cerâmica recheado com ninhos de pardais; sempre foi assim. Aos poucos os olhos se acostumam com a escuridão e vejo mais de acordo com a luz que entra da rua. Observo a mesma cadeira de sempre; a porta — agora — branca. Memórias voltam, se misturam e confundem a mente. Quantas vezes mais estarei aqui, deitada, olhando o teto, e essa cadeira? E a porta?

No quintal, árvores que me viram crescer, terreiro que precisei limpar muitas vezes, detestava também.

Hoje, enquanto escrevo estas palavras, penso que talvez eu nunca saiba se estou indo na direção certa, mas sigo, ora e outra vem um déjà-vu, uma intuição, um contentamento... Uma completude.

Falei ao meu pai que quero ser rezada também. Mas o que é isso? É receber proteção, força e benção. De alguma forma, achar força pra seguir e sempre que der, não ser atingida. Ser guiada para um bom caminho, qual? Isso ainda não é capaz de me tornar eterna, imortal.

Isso, somente as palavras e você — que está lendo — podem fazer. Espero estar no MEU caminho. Até mais porta branca; a gente se vê.

Tamara S Fawkes
Enviado por Tamara S Fawkes em 11/12/2024
Código do texto: T8217063
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