Registro de infância: o vovô bondoso
Gilberto Carvalho Pereira - Fortaleza, CE, 10 de dezembro de 2024
Eu tinha apenas 7 anos de idade. Década de 1950, aos domingos, sempre de roupa nova, isto é, no nosso guarda-roupa eram apenas duas, consideradas novas, para serem usadas nas ocasiões festivas. A visita ao vovô Pereira, era uma delas. Ele sempre estava nos esperando, sentado em uma cadeira de balanço, de vime, colocada estrategicamente no alpendre à entrada de sua casa, para receber os netos que para lá se dirigiam. Nos recebia de pijama listrado, acho que só tinha duas peças, uma semana vestia uma delas, na outra a sua coirmã; uma de tecido de largas listras azul e a outra de listras marrom, calça comprida e camisa de manga comprida, semelhante ao paletó, sempre bem lavadas e passadas, que cheirava à roupa nova. Aguentava aquele calor infernal que tomava conta da cidade todos os dias, “entrava ano, saia ano”. Era o chefe de uma família de quinze pessoas, incluindo a esposa. Entre os filhos, seis homens e oito mulheres.
Lembro-me que ao lado daquela entrada, havia um espaço, o quarto mais fresco da casa, que por isso, era usado por uma das filhas, nossa tia mais idosa, criatura frágil, acometida de uma doença que nunca soube qual era. Ficava ali dia e noite e só nos era permitido vê-la pela janela. Isso não nos incomodava, éramos crianças, não nos dizia respeito.
Outras duas tias moravam também nessa casa, e serviam de cuidadoras do pai, nosso avô. As outras, em número de quatro, moravam em suas casas, em companhia de seus respectivos maridos e filhos/filhas. Era uma família muito grande, contando os filhos/filhas, irmãos de meu pai, essa conta ascendia a quinze indivíduos, contando a vovó Marieta. Não me lembro se alguma vez presenciei toda a família reunida, mas também era fato, que não nos dizia respeito. As figuras mais presentes em minha mente, eram as que estavam sempre próximas ao meu avô.
Os homens, irmãos de meu pai, quase não apareciam por lá, pelo menos quando eu era levado para as festas na casa do velho Senhor Pereira. Um morava em São Paulo, os outros, embora morassem em Fortaleza, residiam em bairros mais distantes.
Uma das particularidades dessa figura enigmática, era ter sempre moedas de baixo valor, trazidas sempre nos bolsos do pijama, para repassar aos netos quando o visitavam aos domingos. O sorriso dele se expandia ao retorno da gurizada, com as mãos cheias de bombons, disponíveis nas cores vermelho, laranja, verde, caramelo, e até azul, em forma de animais, tais como peixinhos, sapinhos, macaquinhos, pássaros, e também formas humanas de meninos, meninas, e de objetos usados em casa. Cada neto tinha sua vez de mostrá-los para aquela pessoa singela e carinhosa.
Quase não falava, ficava ali “pastorando” os netos, seu labor domingueiro, que por certo lhe trazia satisfação e alegria, constatada pela expectativa e ansiedade que demonstrava quando da proximidade da chegada de suas visitas, que iam aparecendo aos poucos. Ao chegarem, pediam-lhe a benção, ele levantava a mão direita, levando-a até próximo aos seus lábios. Depois a criança baixava a cabeça, recebendo o afago de uma leve batida no “cucurute”, como ele gostava de chamar, a parte superior do crânio de uma criança.
Terminado o ritual as crianças iam brincar e ele quedava, ficando ali, solitário e sem se mexer, talvez se lembrando de sua adolescência. Nem mesmo se balançava em sua cadeira de vime, forrada com uma almofada de pano, enchida com algodão, para acomodá-lo sem causar-lhe desconforto. Às vezes, se ajeitava, procurando melhor posição, mas não tirava os olhos dos netos que brincava ao seu redor. Algumas vezes, uma tia trazia-lhe água ou suco de caju, para lhe refrescar o corpo. Lá para o fim da tarde traziam um pedaço de bolo ou doce, que as filhas faziam questão de lhe servir na sua boca.
O movimento da casa não era perturbado pela presença das crianças. O almoço corria tranquilamente, bem como o café da tarde, servido com bolo, pamonha, canjica e outra iguaria de milho, deliciosa, que não consigo me lembrar o nome. A tarde caía, estava na hora de cada uma das famílias do vovô Pereira ir para a suas casas. Ele já se recolhera desde as 17 horas. Até para nós já não havia mais interesse permanecer naquele local, sem a presença dele nos vigiando. Também estávamos cansados, no outro dia haveria aula, éramos compenetrados nesse quesito. Nosso pai também teria trabalho na segunda-feira. A volta, como na vinda, seria de ônibus, do Bairro Gentilândia para o Bairro da Aldeota, 5 km de distância, veículo vagaroso que dava até sono.